‘Carter’; ou a história de como a Netflix pagou por um filme medíocre de plano-sequência ‘Carter’; ou a história de como a Netflix pagou por um filme medíocre de plano-sequência

‘Carter’; ou a história de como a Netflix pagou por um filme medíocre de plano-sequência

‘Carter’, lançamento da Netflix, é um filme de ação que se desenrola como uma longa série de planos-sequência

Lalo Ortega   |  
10 de agosto de 2022 10:39
- Atualizado em 11 de agosto de 2022 16:45

Há um certo fascínio pelos planos-sequência no cinema. É compreensível: independentemente das razões para isso, fazer planos tão longos exige um alto domínio técnico em termos de fotografia, coreografia e direção que, por si só, é digno de admiração… se bem feito. ‘Carter’, filme sul-coreano que chegou à Netflix na última sexta-feira, 5, é a produção mais recente com essas aspirações.

E dizemos aspirações porque, é preciso deixar claro, o novo filme do cineasta sul-coreano Jung Byung-gil (‘A Vilã‘) não alcança nada mais do que isso: ambições. De fato, o longa é filmado como uma série de planos gerais sucessivos. Mas, ao contrário do vencedor do Oscar ‘1917‘ (talvez sua referência mais próxima), os cortes são tão grosseiramente disfarçados que o filme provoca uma sensação de chicotada desde os primeiros cinco minutos de suas mais de duas horas de duração.

O plano-sequência é digno de admiração se bem feito. ‘Carter’, infelizmente, fica extremamente aquém dessas ambições notáveis, conseguindo ser apenas uma sucessão de imagens caóticas quase insuportáveis ​​de assistir.

'Carter' (e a história de como a Netflix pagou por um filme medíocre de plano-sequência)
‘Carter’ é apenas uma série de lutas e perseguições (Crédito: Divulgação/Netflix)

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É o tipo de filme que nos faz pensar, antes de mais nada, por que fazer um filme em plano-sequência (real ou simulado)? Que valor há nisso? Vamos por partes.

O que é plano-sequência?

Vamos partir do fato de que a unidade mais básica da linguagem cinematográfica é o plano, que coloquialmente conhecemos como “tomada”. Um plano refere-se simplesmente ao espaço filmado em relação à figura humana.

Existem diferentes tipos de tomada, dependendo da posição e do ângulo da câmera em relação ao assunto filmado. Pode durar de uma fração de segundo a vários minutos e seus limites são determinados pelo corte ou outra transição para outro plano.

Uma cadeia de planos, localizados no mesmo espaço e tempo, compõem uma cena. Assim, se adicionarmos várias cenas sobre a mesma ação ou tema (mesmo em espaços diferentes), teremos uma sequência.

Portanto, um plano-sequência é um plano que, por sua longa duração, abrange toda a narração de uma ou mais sequências, sem cortes. É por isso que popularmente (e em alguns outros idiomas) eles são conhecidos como “tomadas longas” (long takes, em inglês).

Há filmes que são compostos de vários planos sequenciais. Muito poucos, como ‘Arca Russa’ (2002) de Aleksandr Sokúrov, ou ‘Utøya: 22 de Julho‘ (2018) são feitos de uma vez só (e cada um desses casos os dois têm, aproximadamente, 90 minutos de duração cada).

Existem outros filmes, como ‘Festim Diabólico’ (1948), de Alfred Hitchcock, ou o já mencionado ‘1917’ (2019), que “disfarçam” os cortes entre seus múltiplos planos de sequência, para fazer parecer que toda a ação e as filmagens ocorrem continuamente.

Por que fazer um plano-sequência?

Hitchcock decidiu filmar ‘Festim Diabólico’ inspirado na peça de mesmo nome, que aconteceu em tempo real e sem interrupções entre 19h30 e 21h15.

Mais tarde, como o próprio diretor contou a François Truffaut no livro ‘Hitchcock/Truffaut: Entrevistas‘, ele percebeu que o conceito era “completamente estúpido”, pois “rompia com todas as tradições e renegava todas as teorias sobre a fragmentação do filme e as possibilidades de montagem para contar visualmente uma história”.

O diretor britânico acabaria por reconsiderar, pois, apesar dessa qualidade de “teatro filmado”, o plano-sequência tinha um “pré-corte” nos movimentos da câmera e dos atores. Ainda era possível inserir diferentes tipos de tomadas graças a esses movimentos, para contar a história e criar tensão. A diferença, claro, está na sensação de imediatismo ao ver a ação se desenrolar em “tempo real” diante de nossos olhos.

Ao marcar uma mudança entre os planos, o corte é uma forma de direcionar a atenção do espectador para uma nova imagem ou um novo ponto no espaço. Mas é também um “descanso” visual: a imagem muda, a tensão é liberada ou reorientada.

Em contraste, planos-sequência requerem atenção contínua. Bem usados, no entanto, eles constroem a tensão narrativa de maneiras que não são possíveis com a montagem tradicional.

Por isso, durante muito tempo, o uso de planos sequenciais muito longos foi reservado ao cinema de autor (expressão usada para descrever os filmes de um diretor de cinema ou de um roteirista que refletem sua personalidade artística) ou aos filmes experimentais. Mas, como escreve Erick Grode para o The New York Times, sua crescente popularidade no mainstream é “um lembrete sóbrio de temporalidade, uma marca de virtuosismo profissional, um desafio auto-imposto, ou tudo de uma vez”.

Em outras palavras, o plano-sequência funciona, por um lado, como uma forma de prender o espectador na narrativa de forma única. No entanto, também é verdade que a técnica pode ser utilizada como mero instrumento de vaidade, ao invés de ser um instrumento estético ou narrativo legítimo e justificado.

Para se aproximar do território de ‘Carter’, é preciso dizer que o plano-sequência tem sido utilizado de forma eficaz no gênero de ação. Franquias como ‘John Wick’ são conhecidas pelo uso extensivo de planos de longa duração, enfatizando a brutalidade da ação. Isso, claro, exige um domínio da câmera e coreografia. Caso contrário, a ação fica emaranhada, difícil de acompanhar e a atenção do espectador se perde.

No cinema de ação, o uso de sequências pode muito bem ser baseado nas estética dos videogames, que são projetados precisamente para prender os jogadores em narrativas não fragmentadas. Nos últimos anos, um dos exemplos mais notáveis ​​é o de ‘Hardcore: Missão Extrema’, que foi filmado com câmeras GoPro em perspectiva subjetiva, para replicar o visual dos videogames de tiro em primeira pessoa (First Person Shooter).

Por que ‘Carter’, da Netflix, é um filme de plano-sequência falho?

Até agora, vimos porque usar sequências pode ser uma boa ideia. Também mencionamos como alguns dos melhores casos dela “disfarçaram” o que são, e dissemos que a técnica pode se tornar um mero artifício da vaidade. ‘Carter’ não justifica o uso, não disfarça seus cortes nem remotamente bem e peca flagrantemente neste último aspecto.

O filme tem sérios problemas desde sua concepção: o roteiro. A história é sobre um homem (Joo Won) que acorda em um quarto de hotel, ensanguentado e sem memória de quem ele é. Através de um dispositivo instalado em seu ouvido, a voz de uma mulher o chama de “Carter” e diz que ele está em uma missão para salvar um cientista e sua filha, ambos desaparecidos. Isso porque eles podem ser a única solução para uma epidemia que está devastando as Coreias do Norte e do Sul, transformando seus habitantes em zumbis.

O enredo é difícil o suficiente para explicar em poucas linhas, mas não fica melhor à medida que o filme avança. O roteiro, co-escrito pelo diretor e Jung Byeong-sik, ataca muitas subtramas. Tente, ao mesmo tempo, desvendar uma intriga de tramas entre governos internacionais, uma epidemia de zumbis (como ‘Guerra Mundial Z‘), bem como o mistério da identidade de seu protagonista (como na saga ‘Bourne’) que luta contra hordas de inimigos (à la ‘John Wick’).

E para isso lança muitos fios e pistas de forma dispersa, às vezes sem completá-los. Quando os créditos de ‘Carter’ começaram, não ficou claro para mim qual país estava por trás da trama. E quando finalmente descobrimos a identidade de Carter, estávamos quase no fim: tarde demais para importar.

'Carter' (e a história de como a Netflix pagou por um filme medíocre de plano-sequência)
O protagonista de Carter sofre com um caso grave de identidade desconhecida (Crédito: Divulgação/Netflix)

Se a história é desinteressante ou difícil de acompanhar, a ação não pode falhar. No entanto, o diretor Jung Byung-gil oferece uma produção tão visualmente caótica e tecnicamente sem brilho que ninguém pode ser culpado por parar de assistir após dez minutos simplesmente por causa da chocante sensação de fadiga que ela provoca.

Após cinco minutos de abertura competente, ‘Carter’ é invadido por um excesso de movimentos de câmera desnecessários, coreografias sem inspiração, violência gratuita e efeitos visuais amadores. Os cortes de ‘Carter’ são grosseiramente aparentes, muito fáceis de detectar por trás dos zooms irregulares, os jatos de sangue inseridos digitalmente, sem mencionar a aceleração e desaceleração bruta dos quadros por segundo.

O que fala de uma de duas coisas: um orçamento muito baixo ou uma abismal falta de planejamento sob gestão incompetente. Talvez sejam os dois ao mesmo tempo, já que o produto final de ‘Carter’ parece mais um filme do YouTube feito por um diretor amador financiado com seus próprios salários. É por isso que é tão chocante: Jung Byung-gil não é nenhuma dessas coisas. Seu filme anterior, ‘A Vilã’, é uma proposta de ação muito bem construída.

Não está claro qual foi o custo de produção de ‘Carter’, mas o que é impressionante é que o filme fez parte de um investimento maciço de US$ 500 milhões da Netflix em conteúdo criado na Coreia do Sul (casa da série de enorme sucesso ‘Round 6’). Assim como ‘Agente Oculto‘ (lançado algumas semanas atrás), é outro caso da empresa gastando milhões de dólares em conteúdo que é muito mediano na melhor das hipóteses – ou medíocre na pior delas.

Com ‘Carter’, vemos que menos é mais. Você não precisa de drones girando em todos os lugares para filmar perseguições em ritmo acelerado ou combates em sequências. A Coreia do Sul provou isso: basta ver a brilhante luta no corredor do clássico ‘Oldboy‘, de Park Chan-wook. Uma ótima coreografia bem elaborada, câmera panorâmica lado a lado, e o resultado é melhor que os 132 minutos inteiros de ‘Carter’.

Até a própria Netflix executou com sucesso uma ideia semelhante. Sua série ‘Demolidor’ também tem uma luta em um corredor. A sequência permanece, até hoje, como uma das melhores já existentes de uma produção com o selo da Marvel.

Para o bem ou para o mal, ‘Carter’ é, neste momento, o segundo filme mais popular da Netflix no Brasil (empurrando ‘Agente Oculto’ ainda mais para baixo, com só duas semanas de lançamento). Se ficar mais tempo e atrair mais assinantes para a plataforma, a Netflix terá alcançado seu objetivo.

Enquanto isso, deve-se dizer que, tecnicamente, ‘Carter’ é um dos filmes mais falhos de 2022 e, se você valoriza duas horas do seu tempo, é melhor evitá-lo.

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Publicado primeiro na edição mexicana do Filmelier News.

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