Crítica de ‘Monster’: E quem é o monstro Crítica de ‘Monster’: E quem é o monstro

Crítica de ‘Monster’: E quem é o monstro

‘Monster’, do diretor Hirokazu Kore-eda, mais uma vez nos fala de situações complexas como um espelho para questionarmos

Lalo Ortega   |  
5 de dezembro de 2023 14:42

A filóloga espanhola Irene Vallejo escreve que a palavra “monstro” (traduzida para o inglês como monster) compartilha raiz com o latim monstrare, de “apontar com o dedo”. Esse movimento acusador, com o qual apontamos e designamos o que é diferente de nós, para estabelecer uma barreira invisível que nos separa desse outro.

Na prática, usar a etiqueta é, ao mesmo tempo, uma sentença para o apontado e uma exculpação para quem a emite. Exclui o destinatário da palavra e isenta o emissor da responsabilidade de entender as circunstâncias da outra pessoa, ou pelo menos tentar. É uma quebra pontiaguda: trata-se de algo diferente do humano e, portanto, não merece nem precisa ser entendido.

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Com Monster – vencedor do prêmio de Melhor Roteiro em Cannes 2023, que chegou aos cinemas brasileiros em 1 de dezembro -, o cineasta japonês Hirokazu Kore-eda questiona essas quebras: não apenas por sua arbitrariedade, mas pelas condições sistêmicas que costumam gerá-las e legitimar suas (muitas vezes) injustas consequências.

No processo, o diretor – ávido explorador de tabus sociais e vínculos humanos fora da norma – segura um espelho diante de nós, espectadores, para também lançar luz sobre a propensão humana a julgamentos mais básicos e prejudiciais.

Monster: isso não é Rashōmon

Em Monster, Kore-eda começa jogando as primeiras migalhas de um mistério maior. Do terraço de seu apartamento, Saori Mugino (Sakura Andō, de Assunto de Família) e seu filho adolescente, Minato (Sōya Kurokawa), observam um incêndio em um suposto bordel. Do nada, Minato questiona se um humano ainda seria humano se seu cérebro fosse substituído pelo de um porco.

A estranha conversa é apenas a introdução para uma série de comportamentos cada vez mais erráticos. Um corte de cabelo repentino e um desaparecimento impulsivo levam sua mãe a investigar na escola. Minato, aparentemente, abusou de um colega.

Quando a mãe investiga os problemas do filho, algo mais complexo vem à tona (Crédito: Imovision)

Ao cavar mais fundo, tudo indica que seu comportamento é resultado de uma cadeia de violência que chega até seu professor, Michitoshi Hori (Eita Nagayama). No entanto, a postura da escola e de sua diretora (Yūko Tanaka, Princesa Mononoke) é tímida diante do problema. Enquanto isso, à medida que nos aproximamos de uma aparente resolução, Minato parece cada vez mais perturbado.

Mas em Monster, como em tantos outros filmes de Kore-eda, as respostas nunca são tão simples. Mesmo com uma incógnita não resolvida, o diretor opta por retroceder no tempo e contar a história novamente, agora sob a ótica do professor Hori. Só então podemos entender a velha máxima: as aparências enganam. Ou, pelo menos, não nos contam todos os fatos.

A simples ideia de uma narrativa de moral complexa, fragmentada em partes contadas de diferentes perspectivas, pode nos remeter imediatamente a Rashōmon, o clássico fundamental de Akira Kurosawa, onde conhecemos, um por um, as diferentes versões dos fatos de acordo com cada um dos envolvidos em um crime.

A conclusão inevitável no filme de Kurosawa é que, dada a pouca confiabilidade de tantas testemunhas, com seus respectivos preconceitos e subjetividades, chegar a uma verdade absoluta sobre os fatos é impossível (um fenômeno que transcendeu o filme e foi estudado, adotando seu título, na psicologia e no direito).

Em Monster, não existem respostas fáceis ou personagens infalíveis (Crédito: Imovision)

Com Monster, Kore-eda e seu roteirista, Yuji Sakamoto, tomam o caminho oposto e não deixam espaço para a subjetividade. Caminhamos na linha tênue entre contar versões diferentes de um evento e contá-lo de diferentes perspectivas. Dependendo de quem é nosso protagonista, o filme retém informações e as revela gradualmente (em um de seus recursos mais artificiais, mas que funciona e se justifica em seu objetivo).

A verdade sobre os monstros

Assim, aos poucos, chegamos a uma verdade que talvez não seja singular e absoluta, mas sim mais completa e, consequentemente, complexa. Kore-eda e Sakamoto conduzem a história por caminhos que não poderíamos imaginar no início, mas cuja sequência lógica, inevitavelmente, nos leva a questionar não apenas nossas reações impulsivas iniciais, mas também os sistemas e decisões que causaram o emaranhado.

O processo poderia ser melhor descrito como descascar a casca áspera de uma fruta para chegar ao seu coração suave. Monster recompensa a paciência com verdades emocionantes e reveladoras, tornando-se um belo filme sobre seres humanos e seus relacionamentos terrivelmente complicados.

No final, talvez nenhum dos personagens – nem nós – seja um verdadeiro monstro. Mas Kore-eda nos convida a refletir que, sem dúvida, criamos um particularmente terrível, e somos demasiado propensos a permitir que ele governe nossas vidas.

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