Regras do Fundo Setorial atrapalham distribuição de filmes no Brasil Regras do Fundo Setorial atrapalham distribuição de filmes no Brasil

Regras do Fundo Setorial atrapalham distribuição de filmes no Brasil

Obrigatoriedade de exibição de filmes em salas de cinema, por parte do Fundo Setorial do Audiovisual, atravanca lançamentos e projetos

Matheus Mans   |  
18 de agosto de 2021 11:13
- Atualizado em 19 de agosto de 2021 09:43

Atualmente, no Brasil, existem cerca de 1,8 mil projetos audiovisuais “em execução”, financiados de alguma forma via Fundo Setorial pela Agência Nacional do Cinema (Ancine). Essa informação pode até parecer boa em um primeiro momento — oras, quase dois mil filmes e séries em produção, não é? Mas as coisas ficam difíceis quando entendemos esse termo usado. 

Afinal, quando a Ancine diz que um projeto está “em execução”, na verdade o filme ou série teve parte do orçamento liberado, mas ainda não foi lançado. São R$ 2,2 bilhões investidos nessas produções, que chegaram a ser rodadas até oito anos atrás. E o problema reside, justamente, quando nos perguntamos o porquê dessa demora no lançamento do projeto.

Pacarrete Fundo Setorial
‘Pacarrete’ não pode ser lançado antes no streaming por conta das regras do Fundo Setorial do Audiovisual (Crédito: Divulgação/Pandora)

Boa parte desse montante de quase 2 mil projetos simplesmente não tem dinheiro para finalizar o produto audiovisual. Conforme relatou uma aprofundada matéria da revista Carta Capital, produtores e diretores do naipe de Tatiana Leite (‘Benzinho’) e Juliano Dornelles (‘Bacurau’) não estão conseguindo liberar os recursos para pós-produções de seus filmes.

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Com isso, ficam à mercê da demora da Ancine, precarizada nos últimos anos pelo Governo Federal. No caso de Tatiana Leite, há ainda buscas por mais recursos em editais estrangeiros. É uma corrida contra o tempo. No entanto, mais do que a finalização do filme, há um outro entrave nessa história, paralisando ainda mais os lançamentos: a janela dos cinemas.

Pedágio na sala escura

Uma das regras básicas do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que destina recursos para o fomento de projetos culturais, vai direto ao ponto: quando um filme recebe investimentos do FSA, é preciso ter exibição nos cinemas tradicionais. Se um produtor quiser lançar o filme em uma plataforma digital ou, ainda, vender para alguma streaming, não pode.

É preciso ter pelo menos algum histórico de exibição e distribuição nos cinemas. E isso já começa a pesar. “Tendo essa obrigatoriedade, a produtora não pode andar com as próprias pernas”, analisa Frederico Souza Filho, pesquisador de audiovisual e consultor da área. “É preciso sempre ter um distribuidor e, em seguida, competir nas salas de cinema”.

Na pandemia, essa situação ficou ainda mais complicada. Depois de 185 filmes brasileiros lançados nos cinemas em 2018 e 169 em 2019, foram apenas 60 produções brasileiras nos cinemas em 2020. Agora, em 2021, a situação está consideravelmente melhor, com 57 produções totalmente brasileiras lançadas até agosto. Ainda assim, existem algumas anomalias.

Durante a pandemia, cinemas fechados impediram que distribuidoras lançassem filmes brasileiros (Crédito: Flickr/Cory Seamer)

Em novembro do ano passado, quando a crise do novo coronavírus teve uma breve queda e as salas reabriram de maneira mais ampla, foram 14 filmes brasileiros lançados. Depois, em dezembro, 10. Agora, quando salas ao redor do Brasil passam novamente por esse relaxamento de medidas, explosão: foram 10 filmes brasileiros em junho, 7 em julho e 12 em agosto. 

“O que estamos notando é um movimento de produtoras e distribuidoras apenas aproveitando a abertura dos cinemas para lançar filmes, o máximo possível”, continua Frederico Souza Filho. “Você acha que 12 filmes brasileiros, no mesmo mês que estreou ‘Free Guy’, ‘O Esquadrão Suicida’ e ‘O Homem nas Trevas 2’ vão ter a mesma atenção, o mesmo espaço?”.

Ou seja: mesmo com as salas abertas, o problema persiste. Agora os cinemas estão disponíveis para lançar os filmes brasileiros, mas há uma fila imensa de títulos nacionais e internacionais. Longas de produção local, dessa maneira, competem de maneira desigual com filmes que tiveram investimentos de milhões de dólares apenas no marketing e divulgação.

Fundo Setorial e mercado

Com esse cenário desenhado, cineastas mostram desconforto com o engessamento na distribuição e, principalmente, com a falta de celeridade da Ancine em modernizar essa regra. “A gente tinha obrigação de lançar em cinemas, mas os cinemas estavam fechados. Não tinha como lançar o filme, simplesmente”, diz Allan Deberton,  diretor do elogiado ‘Pacarrete’.

Depois de uma espera de mais de seis meses, Deberton conseguiu colocar o longa-metragem nos cinemas em novembro do ano passado, justamente quando outros 14 filmes também viram a luz do dia. Algumas semanas depois, quando o longa já tinha saído de cartaz, enfim Deberton ao lado da distribuidora Vitrine Filmes puderam colocar no streaming.

“Não tem como o cinema brasileiro
ser difundido e atingir o público
em um momento como este”

“Essa regra tem que ser revista”, diz. “Temos diversos blockbusters internacionais que estão esperando estrear. Vai aumentar a competição e vai ficar difícil pro filme conseguir espaço na tela grande. Acho que o lançamento no streaming tinha que ser uma opção. Tinha que ser permitido. Não tem como o cinema brasileiro ser difundido e atingir o público em um momento como este. Está sendo difícil até para o exibidor”.

Anna Muylaert e Lô Politi também enfrentaram uma situação parecida com ‘Alvorada’, documentário sobre o cotidiano da ex-presidenta Dilma Rousseff no Palácio da Alvorada durante a votação do Impeachment. O filme estava pronto e tinha uma urgência em lançar, já que a discussão política só avançava. No entanto, novamente, não havia salas disponíveis.

Cena de Alvorada
Diretora de ‘Alvorada’ teria lançado o filme antes se não houvesse a obrigatoriedade dos cinemas (Crédito: Divulgação/Vitrine)

“Se a gente pudesse ir direto pro streaming, a gente teria ido. A gente teria lançado um pouco antes. É um filme de urgência que, quanto mais gente assistir, melhor”, disse Lô Politi, uma das diretoras do filme, na época de lançamento. “Eu até acho essa regra ‘ok’ em tempos normais, mas agora já passou da hora de ser revista e alterada”, complementa Anna Muylaert.

A Vitrine Filmes, uma das principais distribuidoras do país, também enfrenta dores de cabeça por conta dessa regra. A Sessão Vitrine, um projeto especial de difusão de cinema brasileiro, também esbarrou nessa cláusula: em 2020, não poderiam colocar a exibição no ambiente virtual enquanto não houvesse a possibilidade de também colocar na sala escura.

“A falta de flexibilização na regra acaba prejudicando estratégias de distribuição que vão da escolha da melhor data até a decisão sobre em qual janela encontrar de forma mais eficaz o público. Adiar estreias em função dos fechamentos das salas implicam em mais gastos, podendo impactar no resultado financeiro – o que é ruim também para o FSA”, diz Felipe Lopes, diretor da Vitrine, em entrevista concedida ao Filmelier.

Ele, porém, comemora que a distribuidora está encontrando caminhos criativos nesse momento. A animação ‘O Pergaminho Vermelho’, por exemplo, teve exibição limitada em fevereiro de 2020, no circuito em Palmas, além de sessão especial nos cinemas no Rio em 7 e 8 de agosto. Depois disso, a animação brasileira foi direto para o streaming Disney+.

“Temos encontrado caminhos e novos modelos de lançamento, possibilitando sucesso comercial e comunicando com o público-alvo de nossos títulos em todas as telas e a regra acaba limitando o planejamento dinâmico que precisamos ter no setor”, complementa o executivo da distribuidora. “No momento atual, esta obrigação não é inteligente”.

Futuro do Fundo Setorial

Mesmo com tantas reclamações sobre a regra do Fundo Setorial do Audiovisual, especialistas apontam que a mudança não deve estar tão perto. Ainda que fontes ligadas ao assunto afirmem que há discussões para a modernização das obrigações do FSA, não há nada de concreto sendo feito na Ancine ou no Ministério do Turismo — que abriga o órgão.

Procurada, a Ancine não respondeu aos questionamentos do Filmelier.

Afinal, neste momento, há preocupações maiores para produtores e produtoras. A manutenção da Ancine, o oferecimento de novos editais e as possibilidades para evitar que o mercado de cinema seja totalmente paralisado são as principais. “Desde 2019 que o cinema brasileiro está à mercê”, complementa Juliana Aragão, professora de audiovisual.

Para ela, seria preciso um movimento maior de produtoras, distribuidoras e plataformas de streaming. “Há muitas indefinições sobre a regulação do streaming no Brasil e, talvez por isso, as grandes plataformas estejam concentradas em outros assuntos”, continua. “Mas em algum momento isso precisa vir à tona. Afinal, acaba sendo bom para todos. Os produtores vendem o filme, o governo recebe retorno e o mercado continua a girar”.

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