Com ‘Oxigênio’, da Netflix, cinema francês volta a respirar fantasia Com ‘Oxigênio’, da Netflix, cinema francês volta a respirar fantasia

Com ‘Oxigênio’, da Netflix, cinema francês volta a respirar fantasia

Berço da primeira ficção científica do cinema, França vê ressurgir terror, fantasia e outros “filmes de gênero”, como ‘Oxigênio’

Matheus Mans   |  
12 de maio de 2021 11:20
- Atualizado em 14 de maio de 2021 18:21

Quando falamos em cinema francês, geralmente lembramos dos dramas e das comédias. São filmes como ‘O Fabuloso Destino de Amélie Poulain’, ‘Intocáveis’ e afins que, mesmo com algum toque de fantasia, trafegam no terreno da realidade, sem grandes escapes. No entanto, o dito “cinema de gênero” ganha novo fôlego com ‘Oxigênio’, produção que estreou nesta quarta (12) exclusivamente na Netflix.

Dirigido pelo parisiense Alexandre Aja, de ‘Predadores Assassinos’, o longa-metragem é uma ficção científica pura. Daquelas bem tradicionais. Afinal, acompanhamos a história de Elizabeth (Mélanie Laurent), uma mulher que acorda na hora errada em uma câmara de criogenia. Ela não sabe como foi parar lá, nem sequer quem era antes desse sono induzido.

Mélanie Laurent, em cena de Oxigênio, da Netflix
Mélanie Laurent em cena de ‘Oxigênio’, ficção científica francesa exclusiva da Netflix (Crédito: Divulgação/Netflix)

A partir daí, em uma conversa bem inusitada com a inteligência artificial M.I.L.O. (brilhantemente interpretada por Mathieu Almeric), ‘Oxigênio’ vai nos mostrando a jornada claustrofóbica dessa protagonista, que precisa fazer de tudo para escapar com vida e antes que o oxigênio acabe. Onde ela está? Como contornar a falta de ar? O que acontece se abrir a câmara?

Além de ‘Oxigênio’

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Não dá para dizer, é claro, que filmes como esse são novidade no cinema francês ou qualquer coisa do tipo. ‘Viagem à Lua’, primeira ficção científica da história do cinema e primeira produção com personagens, cenários e sacadas narrativas, é francesa. Dirigida, produzida, roteirizada e até protagonizada por Georges Méliès, o pai do cinema, o curta é um marco.

Depois, o próprio Méliès comandou uma série de outras produções do gênero até o cinema enfrentar a primeira crise no começo do século XX, diminuindo inclusive o alcance do realizador francês. No entanto, a fantasia continuou na França, durante a Primeira Guerra, com o Impressionismo Francês, que fazia o uso de fantasias e, principalmente, de sonhos nas histórias.

Apesar de ter se popularizado nos Estados Unidos, ficção científica deu seus primeiros passos na França (Crédito: Reprodução)

Só que, em paralelo ao Impressionismo, também surgiu o realismo poético, que valorizava o roteiro das produções. Geralmente, abordavam a difícil realidade socioeconômica da época na forma de melodramas policiais com fundo trágico. Era um cinema mais pé no chão. Depois, pode-se dizer que a fantasia perdeu espaço de vez com a Nouvelle Vague.

O movimento cinematográfico, que abrigou nomes como François Truffaut, Jean-Luc Godard e Eric Rohmer, brincava com a estética, a montagem e o estilo dos filmes, apostando em produções mais abstratas e menos quadradas. Havia toques de sonho e fantasia, sim, mas eram extremamente restritos. O foco, aqui, era a vida, a realidade do dia a dia.

Depois, a fantasia só voltou a esboçar reações na França no início dos anos 2000, com o chamado Novo Extremismo Francês. São filmes fortes e violentos, como ‘Mártires’, ‘A Invasora’ e ‘Alta Tensão’ — este último, aliás, que colocou o próprio Alexandre Aja em evidência. Em comum, além da violência, estão as protagonistas femininas em situações extremas.

Retomada da fantasia

Agora, o que se observa, é uma lenta e interessante retomada de um cinema parecido com o Novo Extremismo Francês, mas sem todo o sangue espirrando na tela. ‘Raw’, lançado no Brasil pela Netflix em 2016, tem tintas e comentários sociais ao contar a história de uma estudante de veterinária que passa a ter impulsos por carne humana. Vira uma canibal.

‘Raw’ surpreendeu com um terror violento e gráfico, marcando uma retomada do Novo Extremismo Francês (Crédito: Divulgação/Netflix)

Também há no radar ‘Clímax’, filme de Gaspar Noé que mostra o desenrolar de uma festa, com toques de bizarrice, violência e até terror. Por fim, há o bom ‘A Noite Devorou o Mundo’, sobre um jovem que vai numa festa e acorda com o mundo tomado por zumbis. Isso sem falar de outras experimentações, como ‘Perdi meu Corpo’, ‘Zombi Child’ e ‘Burning Ghost’.

‘Oxigênio’, agora, completa esse momento interessante do cinema francês. Com produções mais palatáveis, os cineastas brincam com o cinema de gênero. Às vezes, tem tintas sociais (como é o caso de ‘Zombi Child’ ou ‘Raw’). Em outros casos, apenas flerta com ideias, fantasias e medos a partir da ótica francesa — como, mais especificamente, é o bom ‘Oxigênio’.

Críticos desse movimento francês podem dizer que há uma “americanização” do que está sendo produzido na França, em detrimento de tramas mais elaboradas e afiadas. Mas, quem sabe, filmes como ‘Oxigênio’ e ‘A Noite Devorou o Mundo’ possam ser portas de entrada. E Aja, como mostrou lá atrás, pode ser um bom novo ponto de partida.

Reflexão sobre ‘Oxigênio’

Afinal, ‘Oxigênio’, em uma primeira camada, não tem nada demais. É essa mulher tentando sobreviver em um ambiente claustrofóbico, sem saídas. Quase sem esperança. Aos poucos, porém, Aja e o roteiro da estreante Christie LeBlanc vão trazendo novos questionamentos. Tudo bem que há certo exagero na dose, principalmente no final. Mas a vida entra em xeque.

Dentro dessa câmara criogênica, Elizabeth vai não só mergulhando em sua própria vida, como encontrando questionamentos sobre a existência em si. A própria personalidade de M.I.L.O., a inteligência artificial que fala com a protagonista o tempo todo, tem ares de HAL 9000, de ‘2001: Uma Odisseia no Espaço’. É uma brincadeira com os limite da tecnologia em nossa vida. 

Aja, claro, acaba se rendendo ao cinemão em muitos momentos, como já tinha mostrado em ‘Predadores Assassinos’ e até em ‘Piranha’. Dá sustos aleatórios no espectador, ilude o público, flerta com a frustração. Mas, no fundo, o cineasta parisiense mostra que toda a experiência do cinema francês de fantasia está ali, concentrada naquela câmara criogênica, com expectativas para sair de lá novamente e, quem sabe, conquistar o público.

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