“Precisamos ver os idosos como pessoas tridimensionais”, diz diretor de ‘Suk Suk’ “Precisamos ver os idosos como pessoas tridimensionais”, diz diretor de ‘Suk Suk’

“Precisamos ver os idosos como pessoas tridimensionais”, diz diretor de ‘Suk Suk’

Ray Yeung fala ao Filmelier sobre a experiência de colocar nas telas a história de dois homens idosos vivendo um romance em ‘Suk Suk: Um Amor em Segredo’

Matheus Mans   |  
12 de outubro de 2021 09:50
- Atualizado em 13 de outubro de 2021 10:31

Se houvesse um prêmio de filme mais delicado e sensível de 2021, o longa-metragem coreano ‘Suk Suk: Um Amor Em Segredo’ – que chega às plataformas de streaming para aluguel e compra nesta quinta, 14 – seria um dos mais fortes concorrentes. Afinal, com profundidade e cuidado, o diretor e roteirista Ray Yeung (‘Front Cover’) fala sobre dois homens, já em idade avançada, que descobrem um amor que, até então, não conheciam.

Com ares do cinema de Tsai Ming-Liang (‘Dias’), que retrata o cotidiano e encontros que acontecem na nossa rotina, ‘Suk Suk’ vai mostrando como o amor desses dois homens sobrevive, resiste, existe. Escondem da família essa relação, enquanto andam na cidade em locais que não podem ser vistos. O amor é exposto com palavras e olhares; o toque, só na intimidade.

Em ‘Suk Suk’, acompanhamos um casal de homens idosos que descobre o amor (Crédito: Divulgação/Vitrine Filmes)

🎞  Quer saber as estreias do streaming e dos cinemas? Clique aqui e confira os novos filmes para assistir!

Essa história nasceu a partir da leitura de Yeung do livro ‘Oral Histories of Older Gay Men in Hong Kong: Unspoken but Unforgotten’ (“Histórias Orais de Homens Gays Idosos em Hong Kong: Não Faladas, mas Não Esquecidas”, em tradução literal, sem edição em português), onde o escritor Travis Kong coloca nas páginas histórias como a desses homens.

Publicidade

“Queria que o estilo do filme fosse fiel ao livro, que é uma documentação oral das conversas entre o escritor e os entrevistados”, conta Ray Yeungem entrevista exclusiva ao Filmelier. “O filme usa uma abordagem de fatia da vida, mostrando o cotidiano dos protagonistas. Suas vidas diárias são descritas em detalhes quando seus ambientes seguros e protegidos são interrompidos, conforme eles se apaixonam lenta e silenciosamente. Acho que o estilo realista do filme ajuda o público a se relacionar com essa história extraordinária”.

Abaixo, confira a entrevista completa do Filmelier com o diretor Ray Yeung:

Filmelier: Primeiramente, como você conheceu o livro de Travis Kong e de onde veio a ideia de fazer ‘Suk Suk’?

Ray Yeung: Em 2015, voltei de Nova York para Hong Kong com o objetivo de fazer um filme cantonês. Quando eu estava pesquisando um tema, me deparei com um livro chamado ‘Oral Histories of Older Gay Men in Hong Kong: Unspoken but Unforgotten’ (“Histórias Orais de Homens Gays Idosos em Hong Kong: Não Faladas, mas Não Esquecidas”, em tradução literal, sem edição em português), de Travis Kong. O livro é uma coleção de doze entrevistas com gays idosos, alguns dos quais ainda estão no armário e outros já fora. Eles contam suas histórias sobre a necessidade de se conformar à sociedade enquanto escondem seus desejos secretos, durante a era colonial britânica em Hong Kong. Achei que esse tópico daria um filme interessante, já que gays idosos raramente são discutidos em nossa sociedade e quase nunca são representados no cinema.

Filmelier: O filme fala muito sobre coisas não ditas, não sentidas, não entendidas. Como é colocar isso na tela? É um desafio?

Ray Yeung: Queria que o estilo do filme fosse fiel ao livro, que é uma documentação oral das conversas entre o escritor e os entrevistados. Portanto, o filme usa uma abordagem de fatia da vida, mostrando o cotidiano dos protagonistas. Suas vidas diárias são descritas em detalhes quando seus ambientes seguros e protegidos são interrompidos, conforme eles se apaixonam lenta e silenciosamente. Acho que o estilo realista do filme ajuda o público a se relacionar com essa história extraordinária.

Em Hong Kong, os preços das moradias são muito caros e as famílias geralmente têm que viver juntas em espaços minúsculos. Os filhos adultos muitas vezes vivem com os pais idosos e, quando se casam e têm filhos, ainda vivem juntos na mesma casa. Nessas situações, as pessoas precisam tentar viver umas com as outras; e mesmo que haja diferenças em crenças e opiniões, eles têm que se tolerar enquanto mantêm uma harmonia superficial. Portanto, a frustração e a raiva são expressas de maneiras muito sutis, como um leve olhar ou um pequeno gesto. As agressões geralmente são mostradas de forma passiva e os desacordos são refletidos por longas pausas e silêncios mortos.

No filme, tento capturar todos esses momentos para mostrar as diferentes emoções e pontos de vista de cada personagem em diferentes cenas. Por exemplo, quando o filho de Hoi, Wan, percebe que seu pai possivelmente está namorando alguém, ele não diz nada, mas seu olhar de soslaio já mostra que ele sabe o que seu pai está fazendo. Hoi, que está familiarizado com a mentalidade de seu filho, vai desviar o olhar timidamente devido à culpa e vergonha.

Em outra cena, quando a esposa de Pak, Ching, suspeita que seu marido está tendo um caso, ela não o confronta abertamente; em vez disso, ela faz perguntas indiretas para fazê-lo saber que ela não acredita totalmente no que ele está dizendo. Em muitos aspectos, isso está mais próximo do que acontece na vida real. Nem sempre enfrentamos o que mais tememos.

Filmelier: É difícil ver histórias sobre homossexualidade na vida adulta, principalmente quando são homens com famílias já formadas. Qual a importância de falar sobre sexualidade na velhice, mais especificamente sobre homens gays?

Ray Yeung: Acho que vivemos em um mundo bastante preconceituoso. Depois que alguém passa da idade da aposentadoria, a sociedade não dá mais muita atenção a ele. A maioria dos estabelecimentos de entretenimento e atividades de lazer são voltados para os jovens. Quase não existem filmes dedicados a histórias sobre idosos. Sentimos que a única coisa que preocupa os idosos são as questões de saúde, mas, na realidade, eles também precisam de apoio emocional.

Em geral, deveria haver mais representação da geração mais velha na mídia. Quando eu estava procurando financiamento e investidores para ‘Suk Suk’, muitos recusaram porque os dois protagonistas têm mais de 60 anos. Eles acham que um filme sobre LGBTQ já está atendendo a um público de nicho e, adicionando questões importantes para a história, tornaria ainda mais difícil de vender, já que se trata de uma minoria dentro de uma minoria.

Também precisamos ver os idosos como pessoas tridimensionais com seus próprios desejos e necessidades emocionais. Frequentemente, existe um estigma associado à forma como são representados. Eles geralmente são mostrados como avós que dão conselhos sábios ou como vizinhos que são inquietos e intrometidos. Existem muito mais histórias que podem ser contadas sobre eles. Pode ser sobre as provações e tribulações que enfrentam todos os dias; e nem sempre tem que ser necessariamente sobre questões de saúde ou até mesmo sobre a morte.

Para muitos gays idosos enrustidos, dificilmente há qualquer benefício em se assumir. O cenário gay é muito preconceituoso; muitos estabelecimentos são voltados para a clientela jovem. Um entrevistado me disse que foi rejeitado para entrar em uma sauna gay por causa de sua idade. O gerente achava que sua aparência envelhecida afastaria outros clientes que procuravam corpos jovens e atraentes.

Filme quebra uma série de tabus no cinema ao mostrar o relacionamento desses dois homens idosos (Crédito: Divulgação/Vitrine Filmes)

Enquanto eu estava pesquisando para o roteiro, houve uma entrevista no livro de Travis Kong que me tocou particularmente; neste capítulo, Travis perguntou ao entrevistado se ele tinha algum arrependimento. O homem, na casa dos 70 anos, disse a Travis que não se arrependia de ter nadado da China para Hong Kong como imigrante ilegal há muitos anos, sem nada.

Mas agora, décadas depois, ele tem uma esposa que faria o jantar para ele quando ele chegasse em casa e seus filhos lhe dariam uma mesada. Ele realmente acreditava que sua vida era uma história de sucesso, apesar de sacrificar seu verdadeiro eu. Depois de ler isso, percebi que era muito diferente de como o mundo ocidental vê uma vida LGBTQ realizada.

Hoje em dia, as pessoas LGBTQ são encorajadas a assumir e ser verdadeiras consigo mesmas. Do contrário, são vistos como covardes, desonestos e tristes. No entanto, este homem no livro não parecia ter esses sentimentos. Para ele, é uma história de sucesso e não há motivo para se envergonhar. Quando li seu comentário, de repente me perguntei: quem sou eu para julgar este homem? Se é assim que ele se sente, ele não deve ser compelido a ter vergonha de si mesmo. Julgá-lo seria tratá-lo injustamente. Portanto, comecei a escrever um roteiro sobre esses gays idosos; para retratar suas histórias sem julgamento, e apenas mostrar seus dilemas e lutas. Caberia ao público interpretar suas escolhas e decisões.

Filmelier: Os dois protagonistas deslocam-se pela cidade, mas parece que existe o receio de tomar os espaços para si, ficando restritos em áreas clandestinas ou escondidas. Como foi para você fazer essa análise urbana também?

Ray Yeung: Lugares como saunas gays eram importantes nos velhos tempos, quando a homossexualidade era considerada crime em Hong Kong antes de 1991. Naquela época, uma pessoa podia ser presa se fosse flagrada em um banheiro ou em locais públicos. Os balneários gays tornaram-se refúgios seguros para gays enrustidos porque a polícia raramente os agredia; e como eram muito reservados, apenas gays sabiam sobre eles.

Embora a homossexualidade não seja mais crime em Hong Kong, a sociedade ainda é muito conservadora. Homens gays, em particular, raramente andam de mãos dadas ao andar nas ruas. De muitas maneiras, para muitos gays, o espaço público é uma “prisão” porque você está sendo observado onde quer que vá.

Além disso, em Hong Kong, muitos homens gays ainda moram com os pais ou familiares porque os preços dos imóveis são muito altos. Ir a uma sauna gay é mais conveniente porque é um lugar onde eles podem conhecer pessoas e também ter espaço para encontros sexuais.

Cena de Suk Suk
Delicadeza das atuações é um dos grandes destaques de ‘Suk Suk’ (Crédito: Divulgação/Vitrine Filmes)

Gostaria de salientar que muitas saunas gays em Hong Kong não aceitam homens gays idosos porque acham que os homens mais velhos não são atraentes para os clientes mais jovens. Existem apenas duas casas de banho que recebem idosos gays e, de alguma forma, as casas de banho tornaram-se quase como um centro comunitário para esses homens, que estão no armário e ainda moram com suas esposas, ou que saíram há muitos anos e foram rejeitados por suas famílias e acabaram morando sozinho.

Quando filmamos a cena da sauna em ‘Suk Suk’, eu queria que o espaço fosse além de um lugar onde as pessoas apenas se encontravam para fazer sexo. Eu queria retratar um estabelecimento que parecesse mais uma comunidade segura para esses homens enrustidos. O clima na sauna muda conforme a relação dos dois protagonistas evolui. O cubículo em que eles fazem sexo pela primeira vez passa de um lugar um tanto sombrio e frio para um santuário mais romântico e sonhador enquanto eles se apaixonam. Na cena em que o casal janta com os outros clientes, o ambiente é caloroso e animado como uma família feliz e solidária.

Filmelier: Por fim, seu filme chegou aqui nos cinemas brasileiros há algumas semanas e é perceptível como as pessoas sentem a emoção da história — mesmo que se passe do outro lado do mundo. Como é para você ver uma história tão importante e sensível chegar tão longe?

Ray Yeung: Agradecemos à Vitrine Filmes, nossa distribuidora no Brasil e também à nossa agente de vendas Films Boutique, por fazer este lançamento brasileiro acontecer. Sabemos como é difícil lançar um filme em tempos de pandemia. ‘Suk Suk’ teve estreias nos cinemas nos Estados Unidos, Hong Kong, Taiwan, Tailândia, Espanha e França no ano passado. As reações do público foram muito positivas, principalmente na França, onde o filme foi exibido nos cinemas por 7 semanas. Esperamos que o público brasileiro goste de nosso filme e que ele leve a mais distribuições na América Latina.

Em um nível pessoal, fico feliz em ver histórias desses homens da geração mais velha sendo contadas. A maioria desses homens tinha feito muitos sacrifícios em suas vidas e eles tinham esse segredo que eles tinham vergonha de revelar. Portanto, achei importante que suas histórias fossem contadas. Há uma sensação de fortalecimento quando você percebe que não é a única pessoa nesta terra a ter esses sentimentos. Vendo suas histórias projetadas na tela, eles perceberam que seu segredo foi revelado e as consequências não são tão ruins quanto imaginavam. Na verdade, eles podem obter simpatia e empatia. Acho que, para muitos deles, este é o início de um processo de autocura.

O mundo também precisa ver suas histórias. Testemunhar suas lutas e conflitos ajuda as pessoas a entendê-los mais e espero que traga a compreensão de que a necessidade de amor, respeito e liberdade de quem queremos ser é universal.

Quer saber ainda mais sobre ‘Suk Suk: Um Amor em Segredo’, além de poder adicioná-lo na sua lista do que ver a seguir? Clique aqui!

Siga o Filmelier no FacebookTwitterInstagram e TikTok.