Cinema encerra a década de 2010 em ponto de transformação Cinema encerra a década de 2010 em ponto de transformação

Cinema encerra a década de 2010 em ponto de transformação

Exibidores enfrentam desafios com crescimento do streaming, enquanto cinema busca novas formas de atrair público

Matheus Mans   |  
28 de dezembro de 2020 09:12
- Atualizado em 5 de abril de 2023 09:25

Vamos começar este texto de um jeito diferente. Tente puxar pela memória como era o cinema no começo da década, em 2011. ‘Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 2’ foi a maior bilheteria, o mercado de DVDs estava estável e a Netflix engatinhava no Brasil. E veja só: os cinemas bateram recorde no país em 2011, faturando R$ 1,4 bilhão. Número inédito para o setor, segundo relatório do Filme B, em pelo menos três décadas.

Agora, já no final destes anos tão turbulentos, as coisas mudaram. A Netflix se tornou sinônimo de consumo de filmes e séries em casa, forçando o setor a mudar a lógica de funcionamento. Com isso, os streamings no geral se tornaram cada vez mais atrativos. DVDs e Blu-Rays se tornaram itens de colecionador. Enquanto isso, a pandemia do novo coronavírus fez com que cinemas se vissem obrigados a passar por uma transformação completa.

'Vingadores: Ultimato' se tornou um marco para o cinema
Nos últimos anos, o cinema se tornou mais dependente dos “filmes-eventos”, como lançamentos da Marvel e DC (Crédito: Divulgação/Marvel Studios)

Afinal, por mais que os exibidores brasileiros tenham faturado impressionantes R$ 2,7 bilhões em 2019, há mais distrações por aí. Essas bilheterias acabam restritas aos “filmes eventos”, como os lançamentos da Marvel, da DC e outras franquias do tipo. Além disso, por conta da covid-19, o streaming quebrou de vez a frágil janela de vidro dos cinemas. Agora, não há mais aquele respeito ao tempo em que o filme fica em cartaz.

Publicidade

“A pandemia acabou antecipando um processo que era esperado para discussão em um período de cinco, dez anos: o encurtamento da janela de exclusividade nos cinemas”, diz Waldemar Dalenogare Neto, acadêmico e pesquisador de audiovisual, em entrevista recente ao Filmelier. “Quem diria que a AMC, por exemplo, aceitaria 17 dias de exclusividade de um filme nos cinemas para depois ver este posicionado no streaming?”.

Streaming e conforto

Mas vamos por partes nessa equação. Primeiramente, é importante entender como o streaming ganhou força ao longo da década. A Netflix, que começou como uma espécie de locadora, viu à frente e em 2010 já começou seu serviço de streaming no Canadá. Dez anos depois, o negócio está gigante: fecha a década com quase 200 milhões de usuários, em quase todos países do mundo, e faturando US$ 6 bilhões em um trimestre.

Cinema
Streaming se tornou peça central na transformação da sétima arte ao longo da década (Crédito: Divulgação/Netflix)

Enquanto isso, o streaming do “tudum” acabou gerando uma guerra para que outras empresas alcancem o topo do mercado de streaming. Se no início do período 2011-2020 tinha apenas a Netflix como exemplo de streaming, hoje temos Amazon Prime Video, Disney+, HBO Go/Max, Telecine, Globoplay e por aí vai. No campo de aluguel e compra de filmes, plataformas como NOW, YouTube e Google Play se consolidaram, além do iTunes/Apple TV – que transaciona longas-metragens desde 2008. 

“O cinema existiu
por uma limitação
tecnológica”

“Quando o cinema foi criado, não tinha como transmitir o filme de outra forma. Tinha que pegar a câmera dele, colocar o rolinho e chamar o pessoal para assistir. O cinema existiu por uma limitação tecnológica”, diz Omarson Costa, executivo com passagem por grandes empresas do setor de streaming, em recente entrevista concedida ao Filmelier. “Agora, temos opções diversas para assistir no conforto de casa e gastando bem menos”.

Vale dizer, também, que em 2020 o streaming começou a encontrar novas formas de se fazer presente. O premium video on demand (PVOD), por exemplo, ganhou força com o lançamento de títulos como ‘Mulan’ e ‘SCOOBY! O Filme’ numa janela curta, ou até inexistente, entre cinema e streaming. De uma forma ou de outra, as pessoas aceitaram pagar um valor um pouco mais alto para ver filmes de forma mais rápida e segura.

Cinema
Nos Estados Unidos, ‘Mulan’ quebrou a janela de exibição de cinema para ser lançado diretamente no PVOD (Crédito: Divulgação/Disney)

Chegamos em um momento de definições. “Qual será a janela premium daqui pra frente? Qual será o preço do conteúdo? Lembrando que esta nova experiência não é mais VHS/DVD numa TV analógica. O novo premium do Home Entertainment vem em 4K HDR e consumido em telas OLED”, diz Fabio Lima, diretor executivo da Sofa Digital, agregadora de conteúdo que é a publisher do Filmelier. 

Adaptação do cinema

Com isso, os cinemas estão tentando se adaptar de todas as maneiras possíveis. Como destacado por Dalenogare Neto no início deste texto, há acordos entre estúdios e redes de cinema para que o tempo de exibição de longas seja de apenas duas semanas, em média. Depois, já vai pro streaming. A partir daí, a própria rede de exibidores que fez a parceria irá receber uma fatia do bolo — detalhamos esse processo aqui no Filmelier.

Além disso, exibidores começam a deixar qualquer vaidade de lado para abraçar filmes que estão sendo lançados até mesmo simultaneamente no streaming. ‘Trolls 2’ foi a produção que começou essa transformação, ainda no começo da pandemia do novo coronavírus, quando a Universal Pictures anunciou que iria colocar no digital e depois ainda esperava pôr nos cinemas. Houve chiadeira de exibidores, mas logo aceitaram a proposta.

Quase sem querer, ‘Trolls 2’ se tornou um marco na História do cinema (Crédito: Divulgação/Universal Pictures)

“A exibição física, nos cinemas, dificilmente voltará a ser o que era”, afirma Paulo Sérgio Almeida, do Filme B, também em uma recente entrevista concedida ao Filmelier. “Os distribuidores vão virar agentes de venda, já que não tem lugar para distribuir, só vender. No mercado de exibição, apenas os exibidores-raíz, aqueles menores, vão encontrar espaço. Questiono o futuro de multinacionais em todo o mundo e até no Brasil”.

E o cinema na próxima década?

É difícil prever como os cinemas vão se comportar a partir da nova década que começa em 1º de Janeiro de 2021. Afinal, como dissemos aqui no Filmelier anteriormente, será um ponto de transição. Grandes títulos ainda permanecem com agenda para cinemas, como ‘Viúva Negra’ ou ‘007: Sem Tempo para Morrer’. Mas filmes antes impensáveis de ter estreia direto no streaming, irão pro digital logo de cara, como ‘Mulher-Maravilha 1984’ nos EUA. 

Além disso, há o fato de que existem cada vez mais produções feitas exclusivamente para serviços de streaming. Começou como um projeto ousado em 2015, com o filme ‘Beasts of No Nation‘, e agora há grandes blockbusters encontrando seu espaço no digital. Será que isso, de alguma forma, também não deve levar o público a consumir ainda mais pelo streaming? O que fará com que as pessoas se desloquem para o cinema?

‘Beasts of No Nation’ mostrou que o streaming não era apenas um arquivo, mas também um ambiente de lançamentos (Crédito: Divulgação/Netflix)

“Os cinemas vão se tornar um divertimento gourmet, para alguns, para os nostálgicos”, aposta Omarson Costa. “Afinal, estamos em um momento que não dá mais para voltar atrás. As pessoas sentiram o gostinho do digital, como é confortável e mais barato. Para que vão voltar para outro modelo? Para que apostar em algo que é mais caro, mais restrito, e que leva mais tempo? Os próximos anos vão ser transformadores no cinema”.

“O cinema não vai acabar. É um ritual, um hábito”, afirma Humberto Neiva, programador cultural do Espaço Itaú e coordenador do curso de cinema da Faculdade Armando Álvares Penteado (FAAP), em entrevista concedida ao Filmelier em junho deste ano. “Por isso, acho importante que streaming e exibidores cheguem em algum ponto em comum. O mercado precisa chegar em um só consenso e entender como será o nosso futuro”.

Siga o Filmelier no FacebookTwitterInstagram e TikTok.