Com streaming, Bollywood tenta sair das fronteiras da Índia Com streaming, Bollywood tenta sair das fronteiras da Índia

Com streaming, Bollywood tenta sair das fronteiras da Índia

Ao longo de 2020, a Netflix e o Amazon Prime Video se esforçaram em trazer filmes indianos diversos ao catálogo, mostrando uma mudança no cinema de Bollywood

Matheus Mans   |  
22 de dezembro de 2020 09:46
- Atualizado em 24 de dezembro de 2020 16:46

Era quase inevitável. Pelo menos duas vezes ao mês, ao longo de 2020, a Netflix adicionava um filme indiano ao seu catálogo — quer seja uma comédia, terror, suspense, drama, romance. No rival Amazon Prime Video, a chegada de produtos importados da chamada Bollywood também se intensificou ao longo deste ano, com títulos cada vez mais frequentes – muitos, inclusive, sem qualquer opção de áudio ou legendas em nosso idioma.

E isso tem uma explicação: a tentativa dos produtores dessa meca do cinema indiano em expandir as possibilidades e fronteiras de seus filmes. Afinal, o streaming e a pandemia quebraram a hegemonia absoluta dos exibidores de Bollywood e, com isso, novas gerações começaram a buscar meios alternativos de consumir cinema, como acontece em todo o mundo.

Terror ‘Bulbull’, da Netflix, mostra diversidade de conteúdo que chegam ao serviço de streaming (Crédito: Divulgação/Netflix)

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Além disso, se tornou ainda mais urgente a necessidade de levar esses filmes para outros territórios. “[A produção em Bollywood] está em um momento muito crítico”, conta Franthiesco Ballerini, autor do livro ‘Diário de Bollywood. “O streaming está abalando o cinema indiano de maneira grande, especialmente pela entrada dessas plataformas [no país]”.

Além disso, a Índia tem o mercado de video on demand mais competitivo do mundo, com 40 serviços por assinatura e/ou gratuitos (alguns possuem os dois modelos de negócio). Nas opções pagas, as mensalidades chegam a ser menores que R$ 3.

Em 2019, de acordo com o Statista (com dados de BeyonData, Priori Data e SimilarWeb), o Amazon Prime Video tinha 20% dos usuários indianos, empatado com o Disney+ Hotstar. A Netflix é apenas a terceira colocada, com 15%. Isso também justifica os investimentos em produções indianas por parte das gigantes norte-americanas.

A construção de Bollywood

Para entendermos esse impacto, precisamos antes viajar um pouco na história de Bollywood. A Índia viu o cinema apenas alguns meses após a primeira exibição dos irmãos Lumiére em Paris, graças a uma parada do empresário dos “pais do cinema” no país oriental. A exibição agradou e surpreendeu o público, inclusive alguns ricaços que estavam ali presentes.

Foi o que bastou para que importassem uma câmera. Em 1912, chegou aos cinemas o primeiro filme de ficção indiano — ‘Pundalik’, de Nanabhai Govind Chitre.  Conforme conta Ballerini em seu livro-reportagem, as salas de cinema se tornaram populares já na década de 1920 e com alguns magnatas por trás da produção, que se tornaram figuras frequentes por lá.

O filme sobre esportes ‘DANGAL’ é uma das maiores bilheterias da história de Bollywood (Crédito: Divulgação/UTV)

Assim como o cinema da Europa e dos Estados Unidos, obviamente, a produção local da Índia foi se desenvolvendo e ganhando características ainda mais peculiares. Há, por exemplo, um endeusamento de atores e atrizes de sucesso — e endeusamento real, sem aspas. Além disso, a produção é frenética e a música se tornou peça central em todos os filmes.

“O roteiro precisa
de uma sofisticação
maior”

Hoje em dia, já são mais de 800 filmes produzidos por Bollywood ao ano. O ritmo de produção por lá é tão acelerado que as principais estrelas chegam a gravar 10 filmes por vez, com salários astronômicos. Por outro lado, há uma queda acentuada na qualidade das produções no geral, com roteiros cada vez mais genéricos e um excesso ainda maior de remakes.

Há cada vez mais exibições de filmes da Índia em países como Estados Unidos e Inglaterra. No entanto, ainda assim, não é o bastante — dada toda a particularidade da maioria das produções de lá, muitos dos filmes são vistos de maneira preconceituosa ao redor do mundo. Muito por conta das cenas de dança, inclusive em filmes de ação ou em momentos que os ocidentais consideram inoportunos.

Ação dramática de ‘A Tenente de Cargil’ mostra como cinema de Bollywood está se transformando (Crédito: Divulgação/Netflix)

“A principal barreira continua sendo as mesmas de quando escrevi ‘O Diário de Bollywood’”, conta Ballerini. “O roteiro precisa de uma sofisticação maior, com apelo não apenas à ação e entretenimento, mas com histórias mais articuladas. Mas isso está acontecendo rapidamente por conta do surgimento de grandes instituições de ensino de cinema”.

Os dois lados do streaming

Neste momento, então, o cinema de Bollywood entra em um momento crucial para sua história. Por um lado, há essa produção frenética, buscando atingir o maior número de pessoas possíveis por meio das milhares de salas de cinema no país. Por outro, há a popularização dessas plataformas de streaming, de olho nos 1,3 bilhão de habitantes do país.

Não se sabe, ainda, se essas duas contas vão fechar. Se o streaming realmente conseguir romper a fronteira da Índia com produções para além das fronteiras do país oriental, ainda haverá espaço para esses filmes tradicionais e de baixa qualidade? Será que esses filmes menores, que ainda fazem sucesso, ainda existirão? Bollywood irá se manter como é?

‘Turma de 83’ é um dos maiores sucessos indianos da Netflix (Crédito: Divulgação/Netflix)

É o momento da indústria de cinema da Índia encontrar seu caminho. “Eu acho que plataformas como a Netflix vão popularizar filmes indianos”, conta Franthiesco. “Mas por outro lado, infelizmente, a gente vai acabar conhecendo apenas as grandes produções, que fazem bastante sucesso lá. É ruim. [São] vários filmes que não encontramos mais em lugar nenhum”.

Assim, o futuro é uma incógnita. “Ninguém sabe o que vai acontecer nos próximos anos”, diz. “Existe uma tendência de concentrar nos grandes produtores. E uma tendência de fragmentação, em que os gostos locais se tornam mais importantes. Mas Bollywood ganha peso aqui pela diversidade cultural. O streaming sacudiu o cinema, mais do que a chegada da TV”.

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