“Precisamos lutar agora”, diz diretor de ‘Welcome to Chechnya’ “Precisamos lutar agora”, diz diretor de ‘Welcome to Chechnya’

“Precisamos lutar agora”, diz diretor de ‘Welcome to Chechnya’

David France, cineasta por trás de ‘Welcome to Chechnya’, fala sobre preconceito e desafios de filmar em um país que comete genocídio contra a comunidade LGBTQIA+

Matheus Mans   |  
24 de novembro de 2020 11:42
- Atualizado em 27 de novembro de 2020 14:41

Muito pouco se sabe sobre a Chechênia. Alguns sabem que é uma das repúblicas da Federação da Rússia, outros ainda vão lembrar das aulas de História sobre os conflitos russo-chechenos nos anos 1990. Mas poucos, pouquíssimos, devem saber o que se passa na região, presida pelo ditador Ramzan Kadyrov. Por isso o filme ‘Welcome to Chechnya’ é tão importante.

Alinhado com Vladimir Putin e autocrata, Kadyrov tem promovido um genocídio sem precedentes na região. Há anos que liberou e incentivou uma verdadeira caçada à comunidade LGBTQIA+ da Chechênia, condenando homossexuais por suas orientações. Dessa forma, centenas são mortos por suas próprias famílias nas ruas e vias públicas do lugar.

Ativistas russos ganham destaque em ‘Welcome to Chechnya’, ajudando a comunidade LGBTQ a sobreviver na Chechênia (Foto: Divulgação/Synapse)

Agora, este filme de David France (‘A Morte e a Vida de Marsha P. Johnson’), que acaba de chegar ao Brasil, explora detalhes do genocídio. “Soube que ativistas estavam se arriscando para resgatar pessoas [na Chechênia]”, conta o cineasta americano ao Filmelier. “Meus dois filmes anteriores foram sobre importantes ativistas LGBTQ. Quis falar sobre essas pessoas trabalhando em tempo real, confrontando um genocídio tão perigoso”.

Sobre ‘Welcome to Chechnya’

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Para contar a história do que se passa atualmente na Chechênia, France seguiu alguns caminhos. Primeiramente, não focou em uma única história na região. Pelo contrário. Com uma equipe admirável, o diretor seguiu diferentes personagens, com distintas vivências e histórias para contar, para mostrar como a violência contra a comunidade se manifesta por lá.

Dentre outros, há um grupo de rapazes que fogem da Chechênia e ficam escondidos, com outra identidade, em cidades da Rússia. Há um rapaz que precisa escapar, junto com sua família, para sobreviver. Há uma mulher lésbica que, após receber ameaças de violência e até violência sexual do tio, pede ajuda à uma entidade de proteção da região para sobreviver.

São histórias fortes, geralmente entremeadas por imagens chocantes de violências sendo cometidas nas ruas da Chechênia, e que mostram o alto nível de intolerância. “Achei que seria impossível filmar os sobreviventes dessa atrocidade. Eles têm muito medo por suas vidas. Nunca vão se sentir seguros, pois vão ser caçados até o fim do mundo”, diz David France.

E para não comprometer a identidade dos personagens retratados em ‘Welcome to Chechnya’, David France se vale de uma tecnologia nunca antes usada. Por meio de efeitos especiais digitais, o rosto do entrevistados é escondido por meio de um rosto fictício, de mentira, gerado por uma inteligência artificial. Dessa forma, mantém a naturalidade nas emoções.  

“A inteligência artificial
poderia ser usada
para fins moralmente
bons e justificáveis”

“Levou um tempo para encontrar essa abordagem. Isso nunca foi usado antes”, conta David France. “Essa tecnologia parte da ideia de deepfake, algo que assusta, já que mídias podem ser manipuladas para apresentar falsidades. Mas, desde o começo, pareceu para nós que a inteligência artificial poderia ser usada para fins moralmente bons e justificáveis”.

Com isso, foram 10 meses entre a ideia inicial e a prática. Afinal, foi preciso compreender a tecnologia, encontrar profissionais para colocá-la em prática e, ainda, receber aprovação por parte dos entrevistados para que a tecnologia fosse usada no lugar de um borrão ou um quadrado preto no rosto. “Com oito minutos de filme, já temos gente com o disfarce”, diz David.

Mas, apesar do filtro colocado, David conta que a relação foi a mais humana possível. “Foi uma das histórias mais difíceis, de partir o coração, que já trabalhei”, afirma. “Acho que nunca vi esse tipo de criminalidade antes. E tinha a ver com a minha própria comunidade! Foi realmente difícil conhecer essas pessoas tão jovens e já tão assustadas. Queria adotar todos”.

Importância de ‘Welcome to Chechnya’

O documentário está sendo produzido desde 2017, chegando só agora ao grande público após exibições em festivais como Sundance, Berlim e, recentemente, na Mostra Internacional de São Paulo — em todos ele, o documentário foi sempre elogiado e, ainda, premiado no Festival de Berlim nas categorias de documentário e na Mostra pelo público geral.

‘Welcome to Chechnya’ chega em um momento em que as questões LGBTQIA+ se tornam ainda mais urgentes (Foto: Divulgação/Synapse)

Apesar da demora para ser lançado, David acredita que o filme chega em momento importante. “É chocante ver o retrocesso que estamos vivendo na última década”, diz David ao Filmelier. “O que está acontecendo hoje na Chechênia é apenas um exemplo extremo dessa violência reversão dos direitos, proteções e liberdades da comunidade LGBTQIA+”.

E afinal, ‘Welcome to Chechnya’ pode trazer um novo olhar sobre a sociedade. “É chocante como no Brasil estão retornando à um nível e grau de ódio do passado. E isso acontece aí, passando pela Europa e até dentro da Casa Branca”, diz. “Uma das razões para o filme ter esse título é que estamos nos transformando em uma Chechênia. É possível que ‘essa coisa’ consuma ainda mais países, mais população. Precisamos lutar agora. Agora”.

Clique aqui para saber mais sobre o filme ‘Welcome to Chechnya’

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