‘Apresentando os Ricardos’ e a grandiosa história de Lucille Ball

Estreia hoje, 21, um filme que tem tudo para aparecer em posição de destaque na próxima temporada de premiações: ‘Apresentando os Ricardos‘ (‘Being the Ricardos’, no original). Já com três indicações ao Globo de Ouro 2022, o longa-metragem do Amazon Prime Video conta os bastidores de uma semana na produção da série ‘I Love Lucy’, um clássico da TV americana, com foco nos seus dois protagonistas: Desi Arnaz e Lucille Ball, interpretes de Lucy e Ricky Ricardo na produção dos anos 1950, da qual também eram produtores.

O longa é, definitivamente, uma ode à TV de antigamente e às bases do entretenimento que temos hoje. O diretor Aaron Sorkin (de ‘Os 7 de Chicago‘), que também é o roteirista, faz uma escolha peculiar: reúne naquela única semana diversos fatos importantes para a vida de Lucille e Desi, como uma forma de revelar quem foram aqueles dois por trás das câmeras.

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Ou seja, ao mesmo tempo em que ambos precisam ensaiar cenas, se relacionar com os companheiros de set, mostrar sua insatisfação com o roteiro e lidar com executivos e egos, Ball também tem que lidar com a acusação de ser comunista, as traições do marido e, como cereja do bolo, a gravidez de seu segundo filho, Desi Jr.

Lembrem-se: aquele era o começo dos anos 1950. Os Ricardos, na série, nem na mesma cama dormiam. Para piorar, ninguém ainda havia ficado gravida em frente às câmeras – e o casal pretendia incorporar aquela transformação aos roteiros da série, algo inédito na (ainda curta) história da televisão.

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Porém, mesmo com uma atuação magistral de Nicole Kidman como Lucille Ball, ao lado de um competente Javier Bardem como Arnaz, ‘Apresentando os Ricardos’ é o clássico caso de um longa-metragem que não dá a real dimensão dos biografados – o que é uma pena.

Não entenda mal. ‘Apresentando os Ricardos’ é, ainda, um grande filme – não por menos, está na lista de melhores de 2021 do Filmelier. Como relato de bastidores, para quem é aficionado por televisão, funciona muito bem. Sorkin também destila o seu humor cínico, que, se não é próximo da comédia infantil de ‘I Love Lucy’, funciona como tempero em uma realidade complicada.

Ainda assim, para quem não está por dentro da história da TV americana e não se relaciona com os seus bastidores, fica difícil entender a envergadura de quem está ali, em cena: a primeira mulher presidente de um estúdio de Hollywood. Sorkin até tenta preencher essas lacunas com entrevistas ao estilo mockumentário, mas soa falso.

Por isso, cabe aqui fazer um pouco de justiça com quem foi Lucille Ball.

Muito além de ‘Apresentando os Ricardos’

Nascida em 1911, Lucille Ball se empenhou para alcançar o estrelato em Hollywood. Ela fez diversas aparições em filmes do antigo estúdio RKO Radio Pictures, até que fechou um contrato com a Metro-Goldwyn-Mayer. Porém, não chegou na esperada fama, e ficou tachada como “rainha dos filmes B”, de baixo orçamento.

Isso até ficar sem emprego.

Com uma ótima voz, Ball conseguiu estrelar um seriado para a rádio CBS, chamado ‘My Favorite Husband’. Virou um hit. A empresa, então, convidou a atriz para levar a fórmula para o canal aberto do grupo. Foi aí que a genialidade da atriz ficou ainda mais clara.

Lucille Ball fez uma série de exigências para a CBS. Entre elas, que o seu marido na vida real, o músico Desi Arnaz, estrelasse a série. Em parte, era para que a atriz também pudesse salvar o seu casamento, já que a vida dela no set e a dele nos palcos os afastavam. De forma relutante, por colocar um cubano no papel principal, os executivos do canal aceitaram.

Porém, as exigências não acabaram aí: na época, a região com mais população e dinheiro nos EUA era a Costa Leste, e as séries eram encenadas ao vivo, de Nova York, para aquele mercado. Como o VT ainda não havia sido inventado, as produções eram exibidas com delay nas outras regiões do país a partir de um processo chamado “kinescope”, com uma câmera de cinema de 16mm gravando a partir de um monitor o que havia sido encenado ao vivo.

Como você pode imaginar, essas eram gravações de pior qualidade em relação ao material exibido na Costa Leste.

Só que Lucille e Desi não queriam deixar a sua cidade, Los Angeles. Ao mesmo tempo, não fazia sentido para a CBS exibir ‘I Love Lucy’ ao vivo para a Califórnia e deixar a série em kinescope em seus maiores mercados, no outro lado do país. Criou-se um empasse, com a Philip Morris – já patrocinadora da série – pressionando.

A Desi Arnaz é creditada a jogada ainda mais genial: ele, então, ofereceu para a CBS que o próprio casal ficaria responsável por financiar a caríssima filmagem da série em câmeras de cinema, em 35mm, em um inovador modelo de multi-câmeras. Nada seria ao vivo, e os rolos seriam distribuídos pelas afiliadas de todo o país, em qualidade impecável. Além disso, toda a produção ficaria a cargo de ambos, com o canal recebendo os episódios prontos e editados.

Em troca, Ball e Arnaz ficariam com os direitos de exploração da série após a primeira exibição.

Arnaz foi além: criou um modelo de produção enxuto, com apenas um único estúdio e poucos cenários, além de trazer a plateia para as gravações – o que era feito no rádio, de onde ‘My Favorite Husband’ tinha vindo.

De forma isolada, diversas dessas iniciativas já tinham sido executadas pouco antes na televisão. Porém, a reunião de todas aquelas ideias acabou se tornando um novo formato de produção. Nasciam as sitcoms.

Junto nasceu também a Desilu – junção dos nomes do casal -, estúdio que ficou responsável pela produção de ‘I Love Lucy’.

A série? Ah, esse se tornou um sucesso avassalador, explodindo de audiência. A TV mundial se divide antes e depois de ‘I Love Lucy’. As sitcoms viraram material básico em Hollywood, em um formato usado até hoje.

Liderando um estúdio

Lucille Ball seguiu com força na Desilu. Os direitos de reprise de ‘I Love Lucy’ se tornaram um ativo relevante, na medida que viraram peça para o preenchimento das grades de diversas afiliadas pelo país – criando as famosas reprises. Por isso, a CBS comprou esses direitos por uma fortuna, possibilitando que a Desilu adquirisse os antigos estúdios da RKO.

Isso mesmo, Lucille Ball comprou os estúdios onde ela gravou alguns de seus primeiros filmes.

Lucille e Desi se separaram em 1960, com Ball se tornando a única dona e presidente da Desilu. Foi a época de ouro do estúdio: de lá saíram séries como ‘Missão: Impossível’, ‘Os Intocáveis’ e ‘Jornada nas Estrelas’. Quem trabalhou com Ball nessa época fazia questão de ressaltar a visão criativa que ela tinha na função de presidente.

Era, porém, um tempo ainda extremamente machista, com a agora executiva sofrendo acusações por não cuidar dos filhos – algo que, como sabemos, nunca foi feito a um homem. Para isso, Ball chegou a construir um jardim na Desilu que imitava o da sua mansão, podendo assim fazer fotos de divulgação ao lado dos filhos nas rápidas pausas do trabalho. Tudo para publicar na imprensa e aplacar os comentários maldosos.

No entanto, o crescimento de Hollywood e os gastos exagerados com a produção de algumas séries – mais especificamente, ‘Jornada nas Estrelas’ – fizeram com que o estúdio precisasse ser vendido. Coube à Gulf+Westen, dona da Paramount Pictures, comprar a Desilu – que foi renomeada Paramount Television.

Os estúdios da Desilu foram incorporados aos da Paramount, que ficava ao lado. Até hoje o antigo bangalô de Lucille Ball está lá, assim como o jardim – lembrança ainda viva do machismo que continua entre nós.

Lucille, então, criou uma nova produtora, retornando ao papel de Lucy para séries subsequentes. Ela foi bem-sucedida até a segunda metade dos anos 1970, quando a carreira entrou em declínio. A última aparição da atriz em público foi no Oscar de 1989: ela morreria semanas depois, aos 77 anos.

Nessas voltas que a vida dos negócios dá, a Gulf+Westen foi renomeada Paramount Communications e, em 1994, foi comprada pela Viacom, que era a dona da CBS. Em 2006, a Paramount Television se tornou a CBS Television Studios.

Ou seja, hoje, a criação de Lucille Ball e Desi Arnaz tem o mesmo nome do canal de TV daquele acordo dos anos 1950. Séries como ‘CSI’, ‘Star Trek: Discovery’, ‘NCIS’, ‘Cold Case’ e tantas outras possuem, ainda que de forma distante, o DNA da Desilu.

Ainda que deixe de lado boa parte dessa história – há referências aqui e ali, é verdade – ‘Apresentando os Ricardos’ é extremamente competente, sim, em colocar que a atriz era muito mais do que a personagem que interpretava em ‘I Love Lucy’, Lucy Ricardo.

Dona de uma visão além de seu tempo, de um ótimo timing para comédia e extremamente rápida em raciocínio, Lucille Ball ajudou a definir muito do mundo do entretenimento de hoje.

Que, então, possamos ver mais filmes sobre ela – e se continuarem com a grande interpretação de Nicole Kidman, melhor ainda.

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