‘O Milagre’, da Netflix, questiona limites da crença e importância das histórias ‘O Milagre’, da Netflix, questiona limites da crença e importância das histórias

‘O Milagre’, da Netflix, questiona limites da crença e importância das histórias

Longa-metragem fala sobre um enfermeira que acompanha a situação de uma garota que não come há quatro meses

Matheus Mans   |  
16 de novembro de 2022 15:15

Apesar do filme ‘O Milagre‘ se passar na Irlanda do século XIX, a primeira cena do longa-metragem que chegou ao catálogo da Netflix nesta quarta-feira, 16, mostra um estúdio de cinema moderno e claro. Ao fundo, uma mulher, sem se identificar, explica que este é o começo de um filme e ressalta a importância das histórias. Logo depois, a câmera se move e nos deparamos com a enfermeira Lib (Florence Pugh) começando essa história passada séculos atrás.

Esse preâmbulo tem motivo. O diretor Sebastián Lelio (‘Uma Mulher Fantástica‘, ‘Desobediência‘) comanda a história de Anna (a novata Kíla Lord Cassidy), uma jovem garota que diz não comer há quatro meses e, por isso, começa a atrair a atenção de religiosos e crentes. Lib entra na trama como uma enfermeira contratada, junto com uma freira, para supervisionar a garota e saber se aquilo é realmente um milagre e se a menina não está se comendo escondida.

Florence Pugh é a protagonista de ‘O Milagre’, novo filme de Sebastián Lelio (Crédito: Divulgação/Netflix)

Entendeu o motivo daquele estúdio no começo? ‘O Milagre’ faz de tudo, desde sua primeira cena, para mostrar que essa não é uma história religiosa. Lelio, para isso, abraça uma protagonista que em momento algum acredita na possibilidade de um milagre envolvendo a jovem Anna e sabe, sem dúvidas, que alguém a está alimentando sem que os outros saibam. Ela está ali para tentar desmobilizar essa armação e, se possível, salvar a criança de morrer de fome.

‘O Milagre’ e a importância das histórias

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Assim, o novo longa-metragem da Netflix não fala sobre religião, tampouco sobre milagres. É um filme sobre histórias. A partir dessa exibição inicial de que tudo ali não passa de um filme para falar sobre um acontecimento de séculos atrás, Lelio traça uma linha e mostra que está contando uma história sobre uma garota que, naqueles tempos, se transformou em uma história em movimento. Uma história que as pessoas queriam acreditar. Crença acima de tudo.

Afinal, na Irlanda do século XIX, as pessoas estavam passando pelo que ficou conhecido “A Grande Fome”. Nessa época, faltava comida na mesa de casa e as pessoas não tinham o que comer. Morriam, literalmente, de fome. Ainda que o filme especificamente seja uma ficção, inspirado em um livro de Emma Donoghue (‘O Quarto de Jack’), ela também é inspirada em outras verdades: a “fasting girl”, garotas que, nessa época, passavam anos sem comer.

O motivo disso? Oras, ter uma garota sobrevivendo ao desafio de não comer era mais do que um acalento; era esperança. Não era apenas fé de que Anna poderia ser uma santa, mas a compreensão de que Deus, essa figura escondida nos céus, poderia enviar o “maná dos céus” para o resto da Irlanda. Para o resto do mundo, que tal? É uma luz no fim do túnel em um período em que as pessoas se trancavam em casa para morrer de fome em privacidade.

Lelio pinça essa história, roteirizada por ele e por Alice Birch (do excepcional filme ‘Lady Macbeth’), para falar sobre o ontem e sobre o hoje. No passado, durante a Grande Fome, acreditaram em uma garota que simplesmente conseguia sobreviver sem se alimentar — e apenas uma enfermeira inglesa, vinda de fora, conseguiu perceber o absurdo daquilo tudo. Hoje, em qual história nós podemos nos apoiar para ver uma luz no fim do túnel? Qual absurdo nos sustenta?

Para o cineasta, histórias são motores, mas que também nos atormentam e podem nos tirar de nossas realidade. No entanto, como mostra no preâmbulo, pode nos alertar de que essas coisas existem e que podemos fugir delas.

Estética banal em um ritmo cansativo

Apesar de todos os acertos desse alerta de Lelio, olhando para os impactos positivos e negativos das histórias em nossas vidas, vale notar que essas boas sacadas não são transferidas para a estética do filme, tampouco para o ritmo da história. Apesar de ter menos de duas horas, uma raridade hoje em dia quando falamos de dramas, ‘O Milagre’ é vagaroso demais. As coisas demoram a avançar e muitas coisas menos importantes se arrastam na tela.

Enquanto isso, o visual não poderia ser mais óbvio, mais banal. Fica no lugar-comum de qualquer outro filme de época, sem avançar na sagacidade daquela primeira cena — que só volta a ter impacto na trama lá no finalzinho, quando o título brasileiro, inclusive, é justificado. Pelo menos Florence Pugh (‘Não se Preocupe, Querida’) está bem em cena, como sempre. Leva força para sua personagem e faz com que a história continue sendo cativante.

No final, é preciso ter paciência com ‘O Milagre’. Para navegar em sua ideia e em suas nuances, não dá para fazer um mergulho de cabeça. Lelio, como já mostrou em outras produções suas, exige calma, serenidade, mesmo enquanto tudo ao seu redor está balançando, agredindo, assustando. E como ‘O Milagre’ assusta! Afinal, veja como uma história, quando bem contada, pode mexer com a gente sendo ela do passado ou do presente.

‘O Milagre’ já está disponível no catálogo da Netflix. Para saber mais informações sobre o filme, incluindo link para assistir, clique aqui.

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