‘Duna’: as adaptações que abriram caminho para a versão de Denis Villeneuve ‘Duna’: as adaptações que abriram caminho para a versão de Denis Villeneuve

‘Duna’: as adaptações que abriram caminho para a versão de Denis Villeneuve

‘Duna’, de Denis Villeneuve, é o ápice do caminho iniciado por Alejandro Jodorowsky e David Lynch. Conheça a história.

Lalo Ortega   |  
26 de fevereiro de 2024 10:00

Apesar da estreita relação que a literatura e o cinema têm mantido desde os primórdios, com inúmeros romances adaptados para a tela grande, há obras que foram classificadas (corretamente ou não) como “infilmáveis”. ‘Duna’ (‘Dune’, no original), de Frank Herbert, pertence ao seleto grupo de livros que receberam essa distinção durante quase toda a sua existência, isso desde a primeira publicação, em 1965.

Outras obras literárias que já se enquadraram nessa classificação são ‘O Senhor dos Anéis’, de J.R.R. Tolkien; ‘Watchmen’, de Alan Moore; ou ‘A Estrada’, de Cormac McCarthy; para citar apenas os exemplos de sucesso (há também ‘A Torre Negra’, de Stephen King, cuja adaptação muitos preferem esquecer).

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A natureza do “infilmável” parece cada vez mais uma questão relacionada ao avanço da tecnologia e à abertura do público a determinados temas, ambos evoluindo ao longo dos anos. No entanto, ‘Duna’ sobreviveu sob essa condição no século XXI, enquanto as sagas cinematográficas que claramente inspirou, como ‘Star Wars’, continuam a se expandir sem parar.

Estrelado por Timothée Chalamet, Rebecca Ferguson e Zendaya, a nova versão de 'Duna' chega aos cinemas nesta semana (Crédito: divulgação / Warner Bros.)
Estrelado por Timothée Chalamet, Rebecca Ferguson e Zendaya, a nova versão de ‘Duna’ chega aos cinemas nesta semana (Crédito: divulgação / Warner Bros.)

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O romance, de 600 e tantas páginas (dependendo da edição), narra a trama de uma sociedade intergaláctica por meio dos olhos de diversos de personagens, passando por boa partes deles em um mesmo capítulo – traçando uma multiplicidade de subtramas e linhas de pensamento entre eles.

Como se não bastasse, o texto vem acompanhado de quatro anexos que abrangem desde a ecologia à religião em Arrakis (planeta também conhecido como Duna), além de um glossário e notas cartográficas.

Ao longo dos anos, ‘Duna’ foi descrita como uma ficção filosófica, um comentário religioso, uma parábola ambiental à frente de seu tempo e uma alegoria política, econômica e militar (os analistas a relacionaram a táticas militares e geopolíticas contemporâneas, por exemplo).

Em outras palavras, é o tipo de livro que parece implorar para nunca ser adaptado, pelo menos não em um único longa-metragem de 2 a 3 horas – duração máxima para uma produção de Hollywood, que talvez seja a única indústria com recurso econômico para um épico espacial de tais proporções.

Isso, no entanto, não impediu muitos de tentar… e falhar. Os nomes de dois cineastas se destacam acima de todos: Alejandro Jodorowsky e David Lynch.

Jodorowsky e o épico que nunca existiu

A primeira aquisição dos direitos de adaptação de ‘Duna’ veio da APJ Filmes, do produtor Arthur P. Jacobs, mais conhecido por um certo blockbuster na época: ‘O Planeta dos Macacos’. Jacobs abordou cineastas como David Lean (‘Lawrence da Arábia‘) para dirigi-lo, mas a produção foi adiada devido as continuações da franquia simia. Por fim, Jacobs morreu em 1973, de infarto.

Foi em 1974 que um consórcio francês, liderado por Jean-Paul Gibon, adquiriu os direitos da APJ. Escolheram o cineasta chileno Alejandro Jodorowsky, que acabava de se firmar no cinema com três longas-metragens no México: a adaptação ‘Fando e Lis’ (1968), o faroeste vanguardista ‘El Topo’ (1970) e a fantasia surrealista de ‘A Montanha Sagrada’ (1973).

Jodorowsky treinou sua equipe criativa como quem forma um time esportivo de fantasia. O cartunista francês Jean Giraud, mais conhecido como Moebius, ficou encarregado de criar o conceito visual do filme inteiro. O ilustrador de ficção científica Chris Foss projetou várias das espaçonaves; Dan O’Bannon, que havia trabalhado em ‘Dark Star’, de John Carpenter, supervisionaria os efeitos especiais; o artista suíço H.R. Giger desenhou os sets para o planeta Harkonnen; e a banda Pink Floyd, seguindo o sucesso do álbum ‘The Dark Side of the Moon’, iria compor a música.

Jodorowsky com o roteiro de sua versão de Duna, Frank Herbert até disse que era "do tamanho de uma lista telefônica" (Crédito: Divulgação/Sony Pictures Classics)
Jodorowsky com o roteiro de sua versão de ‘Duna’, Frank Herbert até disse que era “do tamanho de uma lista telefônica” (Crédito: Divulgação/Sony Pictures Classics)

O primeiro membro do elenco confirmado foi seu próprio filho, Brontis Jodorowsky, que passou por um intenso treinamento em artes marciais para interpretar o papel principal, Paul Atreides. David Carradine, de quem lembramos hoje por ‘Kill Bill‘, desempenharia o papel do duque Leto Atreides. Geraldine Chaplin foi escalada como Lady Jessica, um papel anteriormente rejeitado por Charlotte Rampling devido a uma cena escatológica no roteiro, que envolvia cerca de 2.000 figurantes.

Isso foi apenas o começo: como Nick Fury com seus Vingadores, Jodorowsky conseguiu recrutar para sua causa Orson Welles como Barão Harkonnen, Gloria Swanson como Gaius Helen Mohiam, Udo Kier como Piter de Vries e o líder dos Rolling Stones, Mick Jagger, como Feyd-Rautha. A cereja do bolo era Salvador Dalí (com um salário de US$ 100 mil a hora, por uma cena minúscula) no papel do imperador Shaddam IV.

Considerando o material existente do filme, o espírito de sua época e o talento envolvido, parece que ‘Duna’ de Jodorowsky teria sido uma mistura entre o colorido psicodélico dos anos 1970 e o terror, humor e contradições chocantes de seu cinema do pânico (o destino de Leto Atreides em sua versão era muito diferente, de uma brutalidade reminiscente do que seria seu próximo filme, ‘Sangue Ruim’).

No entanto, isso não aconteceria. Com um orçamento fora de controle, além de uma duração estimada em cerca de 10 horas de filme, o projeto foi cancelado após quase três anos de desenvolvimento. A produção foi descrita como o maior filme de ficção científica já feito. No entanto, conforme detalhado no documentário ‘Duna de Jodorowsky’, seu roteiro, storyboards e designs – que foram enviados para vários estúdios de Hollywood – influenciaram obras essenciais para a evolução do gênero no cinema.

Crucialmente, Dan O’Bannon contribuiu para os efeitos especiais de ‘Star Wars’ (1977). Ele também trabalhou como roteirista e “consultor de design visual” para ‘Alien: O 8º Passageiro’ (1979), de Ridley Scott, a quem recomendou trabalhar com H.R. Giger. O suíço entrou para a história do cinema ao projetar a famosa criatura do filme, bem como o mundo no qual ela se originou.

Esboço de H.R. Giger para o Palácio Harkonnen no filme de Jodorowsky. Parece familiar? (Crédito Reprodução/Clássicos da Sony Pictures)
Esboço de H.R. Giger para o Palácio Harkonnen no filme de Jodorowsky. Parece familiar? (Crédito Reprodução/Clássicos da Sony Pictures)

Por outro lado, Jodorowsky retomaria sua colaboração com Moebius e juntos criaram a série de quadrinhos ‘O Incal’. A dupla acabaria processando Luc Besson, diretor de ‘O Quinto Elemento’, argumentando que o filme plagiou vários elementos visuais de seus quadrinhos. Eles perderam o caso em 2004.

‘Duna’ de David Lynch: filme de um produtor

Em 1976, o produtor italiano Agostino “Dino” De Laurentiis (que trabalhou em filmes como ‘Noites de Cabíria’ de Federico Fellini) adquiriu os direitos. Após reescrever o roteiro, o produtor decidiu que Ridley Scott seria o homem certo para o trabalho, trazendo H.R. Giger com ele após o sucesso de ‘Alien’. No entanto, depois de uma longa pré-produção e a perspectiva de dividir ‘Duna’ em dois filmes, Scott foi trabalhar em ‘Blade Runner‘ (1982).

Com os direitos prestes a expirar, De Laurentiis renegociou com Herbert, acrescentando também as continuações. A essa altura, um certo David Lynch acabara de ser indicado ao Oscar de Melhor Diretor por seu segundo filme, ‘O Homem Elefante’ (1980). Foi um drama muito mais convencional do que seu primeiro longa-metragem, o pesadelo industrial inefável de ‘Eraserhead’ (1977).

Por recomendação de sua filha Rafaella, também produtora, De Laurentiis decidiu que o homem para o trabalho era Lynch que, curiosamente, nem sabida existência a do romance. Notoriamente, o cineasta já havia rejeitado outra grande produção de ficção científica: ele se recusou perante o próprio George Lucas a dirigir ‘O Retorno dos Jedi’.

E assim começou uma filmagem, que os levou para o Churubusco Studios da Cidade do México, com um estranho chamado Kyle MacLachlan no papel principal, Paul Atreides. O elenco também incluiu nomes como Patrick Stewart (antes de seus dias de Picard de ‘Star Trek’), Max von Sydow (‘O Sétimo Selo‘), Dean Stockwell (‘Paris, Texas‘) e uma muito jovem Virginia Madsen em apenas seu terceiro filme. Esta versão não tinha Mick Jagger, mas tinha Sting.

Porém, ‘Duna’ nasceu praticamente morta devido a um choque de visões. Lynch, que a longo prazo foi caracterizado como “auteur” cinematográfico, controlando todos os aspectos de suas obras, procurou capturar sua sensibilidade artística única à interpretação da história.

Parte disso persistiu: alguns dos cenários são uma reminiscência da decadência industrial de seus dois filmes anteriores e, em retrospecto, seu Vladimir Harkonnen (interpretado por Kenneth McMillan), sinistro mas ridiculamente exagerado, se encaixa no cânone dos antagonistas que viriam depois na filmografia do diretor.

Mas, como disse a Francesca Annis (que interpretou Lady Jessica) em uma entrevista para o Deadline em 2021: “Minha experiência de trabalhar em ‘Duna’ foi que, se David Lynch tivesse sido capaz de fazer seu próprio filme, teria sido brilhante, mas infelizmente Dino [De Laurentiis] supervisionou cada pequeno detalhe. Dino já estava pensando nas vendas do filme. David queria fazer as cenas muito sombrias, para que o submundo parecesse sombrio e sinistro. Dino não permitiu. Tiveram que fazer tudo muito bem iluminado para que ficasse bom em vídeo. Eu não acho que David fez o filme que queria fazer.”

Esta cena parece que saiu do filme 'Eraserhead' (Crédito: Divulgação/Universal Pictures).
Esta cena parece que saiu do filme ‘Eraserhead’ (Crédito: Divulgação/Universal Pictures).

O tempo de filmagem também foi um problema. O primeiro corte do filme, de acordo com Rafaella De Laurentiis, tinha cerca de 4 horas, muito mais do que o permitido para um blockbuster projetado para pegar a onda de ‘Star Wars’. O corte distribuído comercialmente foi reduzido para menos de 2 horas e 20 minutos.

O resultado foi uma destilação tão extrema do livro de Herbert que Virginia Madsen narra todo o contexto durante os primeiros segundos do filme, como se fosse um curso intensivo. Na primeira cena, o complô conta a família Atreides é explicado de uma forma totalmente crua.

“Qualquer filme de Hollywood que tenha de se explicar detalhadamente no início tem um problema”, Francesca Annis ao se lembrar da estreia do longa, a única vez que ela o viu.

“Quando fiz ‘Duna’, não tinha o corte final”, escreveu Lynch em seu livro de 2006, ‘Catch the Goldfish: Meditation, Awareness and Creativity’. “Foi uma tristeza enorme, porque eu senti que tinha me vendido e, acima de tudo, o filme foi um fracasso de bilheteria”. De acordo com Box Office Mojo, a produção arrecadou menos de US$31 milhões (US$ 81,8 milhões atualizado pela inflação) globalmente, enquanto o orçamento foi de 40 milhões (US$ 105,6 milhões em valores atuais).

“Se você faz algo em que acredita e fracassa, uma coisa é certa: você ainda pode viver consigo mesmo”, acrescentou Lynch. “Do contrário, é como morrer duas vezes. É muito, muito doloroso.”

Francesca Annis e Kyle MacLachlan como Lady Jessica e Paul Atreides em Duna, de 1984 (Crédito: Divulgação/Universal Pictures)
Francesca Annis e Kyle MacLachlan como Lady Jessica e Paul Atreides em ‘Duna’, de 1984 (Crédito: Divulgação/Universal Pictures)

Nem tudo foi uma perda para o cineasta americano. Este filme o colocou no caminho de Kyle MacLachlan, com quem colaboraria em duas de suas produções de maior sucesso: ‘Veludo Azul’ (1986) e a série ‘Twin Peak’s (1990-1991, 2017). O primeiro é considerado um dos melhores filmes de mistério de todos os tempos e rendeu a Lynch sua segunda indicação ao Oscar de Melhor Diretor.

Hoje em dia, ‘Duna’ é considerado um filme cult e está disponível para assistir em várias plataformas de streaming. Saiba onde assistir à produção clicando aqui.

‘Duna’, de Denis Villeneuve: será que agora vai?

Durante o século XX, essas foram tentativas de trazer ‘Duna’ para o cinema. A próxima adaptação veio em 2000, e não na tela grande: ‘Frank Herbert’s Dune’, uma minissérie de três episódios, quatro horas e meia, transmitida pelo então chamado Sci-Fi Channel (agora SyFy).

Embora claramente limitada pelas possibilidades de efeitos especiais computadorizados na televisão na época, a produção foi indicada a três prêmios Emmy e ganhou dois: Melhor Fotografia e Melhor Efeitos Visuais na categoria de minisséries.

O sucesso da referida minissérie gerou uma sequência, ‘Children of Dune’, englobando as duas primeiras sequências da obra original. O elenco inclui James McAvoy e Susan Sarandon, entre outros.

Por outro lado, em 2007, o produtor Kevin Misher obteve os direitos do livro para a Paramount Pictures e, no ano seguinte, o estúdio anunciou que faria a adaptação, com Peter Berg (‘Troco em Dobro’) como diretor. Berg deixou o projeto no ano seguinte e foi substituído por Pierre Morel (‘Busca implacável’) em 2010. No entanto, depois que ele também deixou o projeto, a Paramount abandonou os planos em 2011.

E assim chegamos a 2016, quando a Legendary Entertainment adquiriu os direitos de ‘Duna’ para uma nova adaptação. No ano seguinte, ele confirmou o cineasta canadense Denis Villeneuve como chefe da produção, após seu aclamado filme de ficção científica, ‘A Chegada’ (2016), e em breve lançaria a tão esperada sequência de um clássico cult: ‘Blade Runner 2049’ (2017).

Curiosamente, a versão 2021 de ‘Duna’ traz consigo alguns fechamentos de ciclo. Charlotte Rampling, que recusou o papel de Lady Jessica na versão de Jodorowsky, retorna aqui para interpretar a Madre Superiora da Bene Gesserit, Gaius Helen Mohiam.

Além disso, o filme de Villeneuve adapta o romance de Herbert em dois longas bem extensos, ecoando o plano de Ridley Scott de fazer dois filmes.

E o que Lynch e Jodorowsky dizem? O primeiro afirmou que se recusa a ver a nova versão. “Não tenho nenhum interesse em ‘Duna'”, disse ele a The Hollywood Reporter em 2020. Mas não é devido a qualquer ressentimento pessoal contra Villeneuve, mas porque “[o filme] foi uma vergonha para mim”.

É semelhante ao sentimento que o cineasta chileno confessou em ‘Duna de Jodorowsky’, ao se lembrar de ter ficado aliviado ao ver o quão inadequada a versão de Lynch acabou sendo. Em 2020, Jodorowsky disse ao IndieWire que planeja ver o filme de Villeneuve, mas duvida que haja um cineasta no mundo que possa fazer um trabalho à altura da obra original.

“’Duna’ é um livro parecido com Proust. É ficção científica, mas é muito, muito literário”, disse Jodorowsky. “É muito difícil encontrar as imagens para o filme, porque as imagens são ópticas”.

Portanto, voltamos à questão do início. Em 2021, com tantos textos considerados “infilmáveis” já transformados em filmes – com maior ou menor sucesso -, isso já não se discute e, pelo menos, a tecnologia está bem avançada. Mas é possível, a partir do roteiro, adaptar um romance tão complexo, de forma acessível ao grande público e lucrativa?

Talvez seja impossível. Portanto, pode não ser necessária. Uma adaptação não precisa ser fiel à risca ao livro, mas encontrar seu próprio espírito com sua própria linguagem. Não precisa necessariamente ser melhor ou pior do que o material original. Talvez “diferente” seja o suficiente.

‘Duna: Parte 2’, de Denis Villeneuve, chega aos cinemas brasileiros nesta quinta, 29 de fevereiro.

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Publicado primeiro na edição mexicana do Filmelier News, e atualizado no 26 de fevereiro de 2024.

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