“Há grandes mudanças ocorrendo agora na Arábia Saudita”, diz diretora Haifaa Al Mansour

Maryam é uma jovem, no coração da Arábia Saudita, tentando se firmar como médica. Ela é competente, profissional, qualificada. No entanto, ainda assim, o machismo estrutural da região em que mora e trabalha não permite que ela tenha uma carreira como a de um homem. Por isso, ela dá um chacoalhão no patriarcado quando, quase sem querer, se candidata para um cargo público. Mais do que vencer, Maryam quer ser ouvida.

Essa é a história de ‘A Candidata Perfeita’, longa que está em cartaz nos cinemas brasileiros desde o começo de setembro. Dirigido por Haifaa Al Mansour, o filme se confunde com a própria história da cineasta. Afinal, assim como Maryam, a diretora trilhou seu próprio caminho na profissão, passando por cima de machismos: foi a primeira diretora a comandar um filme na Arábia Saudita e, depois, emplacou uma carreira internacional. 

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Hoje, ‘A Candidata Perfeita’ já é seu quarto trabalho nas telonas. O primeiro foi com o histórico ‘O Sonho de Wadjda’, que a tornou a primeira mulher a dirigir um filme no país. Depois vieram os internacionais ‘Mary Shelley’, com Elle Fanning, e ‘Felicidade Por Um Fio’, da Netflix. Agora, ela ainda está por trás da adaptação de ‘A Seleção’, filme inspirado em uma saga de livros de sucesso e com um número de fãs impressionante no Brasil.

“Há grandes mudanças ocorrendo agora na Arábia Saudita, e eu realmente queria contribuir para encorajar as pessoas a aproveitarem as mudanças positivas que estão ocorrendo lá”, conta a cineasta em entrevista ao Filmelier. “Passamos por um período tão longo de tempo onde nada mudou, onde parecia que até mesmo as menores aberturas ou relaxamentos das restrições culturais sob as quais vivíamos pareciam impossíveis, especialmente quando se tratava da vida das mulheres”.

A seguir, confira a conversa completa do Filmelier com Haifaa Al Mansour

Filmelier: Primeiramente, como foi o processo de ser a primeira mulher a dirigir um filme na Arábia Saudita?

Haifaa Al Mansour: Estou muito honrada em ser a primeira diretora de cinema da Arábia Saudita – e muita coisa mudou desde que fiz meu primeiro filme saudita. Foi incrivelmente difícil fazer um longa-metragem em 2011, e as pessoas ainda hesitavam em abraçar qualquer forma de expressão artística pública naquela época. O cinema era especialmente visto como tabu, e a ideia de estrear nos cinemas havia se tornado uma linha vermelha que a maioria de nós pensava que nunca seria ultrapassada.

Claro que agora tudo é diferente, e temos cinemas em exibição em todo o reino. E no meu primeiro filme eu não pude trabalhar com os homens em público, então tive que dirigir de uma van. Ter permissão para me misturar totalmente com minha equipe e estar totalmente imerso na produção foi incrível. Também foi muito emocionante ter tantos jovens sauditas entusiasmados trabalhando no set. Eles são o futuro da indústria, e vê-los dando tudo de si para contribuir e fazer parte da produção do filme foi muito especial para mim.

Ainda temos um longo caminho a percorrer na construção de nossas equipes locais e experiência, mas o entusiasmo está aí para construir. Tenho certeza de que é um momento emocionante para ser um cineasta da Arábia Saudita.

Filmelier: Falando sobre seu novo filme, de onde veio a inspiração para contar a história de ‘A Candidata Perfeita’?

Haifaa Al Mansour: Há grandes mudanças ocorrendo agora em casa, na Arábia Saudita, e eu realmente queria contribuir para encorajar as pessoas a aproveitarem as mudanças positivas que estão ocorrendo lá. Passamos por um período tão longo de tempo onde nada mudou, onde parecia que até mesmo as menores aberturas ou relaxamentos das restrições culturais sob as quais vivíamos pareciam impossíveis, especialmente quando se tratava da vida das mulheres.

Mas agora o ritmo da mudança é tão rápido que é difícil acompanhá-lo, e o desafio agora é incentivar as pessoas a sair e aproveitar ao máximo as oportunidades que têm. Especialmente para as mulheres, será necessária uma grande mudança de pensamento para compreender totalmente e abraçar as liberdades que agora têm a chance de explorar.

Filmelier: Isso diz muito sobre Maryam, né? Ela é uma personagem forte e precisa que enfrenta as opiniões, muitas vezes sexistas e depreciativas, ao seu redor. Você, quando decidiu dirigir um filme, teve reações semelhantes? Quanto de Maryam tem em você?

Haifaa Al Mansour: Bem, acho que pode ser muito difícil forçar uma mudança, mesmo quando feita com cuidado. Quero que as pessoas pensem sobre o quão difícil é a mudança e o que é realmente necessário para criar transformações dentro de uma sociedade. Acredito que leva tempo e muito trabalho duro para realmente mudar as mentes das pessoas e alterar seus valores. Podemos ficar frustrados e exigir mudanças rápidas e extremas, mas para realmente evoluir uma sociedade significa construir uma compreensão de novos valores no coração das pessoas. Essa é a minha história e a que eu queria contar por meio de Maryam.

Eu também gostaria de celebrar o forte legado artístico e cultural da Arábia Saudita e contar uma história que destaca a importância de construirmos sobre essas tradições como a base para o desenvolvimento de nossas sociedades. Tanto nossa música, teatro, histórias e todas as formas de expressão artística foram quase totalmente apagadas de nossa cultura, então eu senti que precisávamos de uma história que lembrasse as pessoas das fortes tradições artísticas que temos, e como elas podem nos ajudar a avançar para um futuro empolgante.

Filmelier: Falando nisso, atualmente, estamos vendo uma regressão rápida dos direitos das mulheres no Afeganistão. Qual a importância de um filme como ‘A Candidata Perfeita’ para este momento no Oriente Médio? É importante ter uma fonte de inspiração agora?

Haifaa Al Mansour: O que estamos vendo no Afeganistão agora é realmente de partir o coração. Espero que este filme sirva de inspiração para as pessoas entenderem melhor as mulheres da região. Embora nossas circunstâncias sejam muito diferentes na Arábia Saudita em comparação com o Afeganistão, existem muitos valores e crenças que compartilhamos.

Eu definitivamente acredito que a maneira mais eficaz de promover a mudança ou o questionamento desses valores é contar uma história divertida com a qual as pessoas possam se identificar e personagens pelos quais possam sentir simpatia. Ninguém quer ser perseguido, e não acho que alguém queira ver personagens que são simplesmente vítimas.

Queremos ver personagens que estão tentando tornar suas próprias vidas melhores, e vão atrás das coisas que querem para si mesmos e, no processo, levar toda a sociedade adiante por meio de seus esforços.

Filmelier: Pra terminar, você tem novos projetos?

Haifaa Al Mansour: Tenho um filme em andamento para a Netflix intitulado ‘A Seleção’. Estou muito animada com a forma como está acontecendo e parece que há alguns fãs da série de livros no Brasil. Eles são muito ativos nas redes sociais! Espero que eles gostem!

Eu também estou fazendo muita TV nos Estados Unidos recentemente e tem sido uma experiência incrivelmente valiosa. É muito mais rápido do que um filme,  que pode levar anos para ser lançado. Na TV, você meio que entra de paraquedas e tem que aprender as diferentes maneiras que cada show é feito, e a visão especial que cada show runner tem para a série.

Eu comecei a fazer todos os tipos de coisas novas, de efeitos especiais a dramas de época, por isso é muito divertido explorar todos esses gêneros diferentes.

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