‘Não Olhe para Cima’ e a autodestruição como um espetáculo ‘Não Olhe para Cima’ e a autodestruição como um espetáculo

‘Não Olhe para Cima’ e a autodestruição como um espetáculo

Novo filme da Netflix demonstra o buraco negro que as redes sociais são para conversas sobre questões realmente importantes

Lalo Ortega   |  
29 de dezembro de 2021 12:48
- Atualizado em 30 de dezembro de 2021 19:10

Hoje, nenhuma experiência será mais frustrante e absurda do que tentar falar sobre qualquer coisa nas redes sociais. É como gritar algo para o vazio e receber em troca uma opinião radicalmente contrária, de modo que tudo seja esquecido algumas horas depois. ‘Não Olhe para Cima’ (‘Don’t Look Up’), filme lançado na última semana na Netflix, é talvez a coisa mais próxima daquela experiência transformada em filme – que, em uma metáfora que se autoalimenta, reverberou nos últimos dias em mais discussões vazias na internet.

O filme, que poderia muito bem ser descrito como uma sátira do desastre, é dirigido por Adam McKay, em seu primeiro longa-metragem desde ‘A Grande Aposta‘ e ‘Vice‘, que é baseado em eventos totalmente fictícios (embora “possíveis”, como gosta de dizer a Netflix no material de divulgação).

‘Não Olhe para Cima’ segue o astrônomo Randall Mindy (Leonardo DiCaprio) e sua aluna, Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence), que fazem uma descoberta aterrorizante: um cometa está em rota de colisão com a Terra, deixando a humanidade com apenas seis meses de idade. própria extinção.

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No entanto, suas tentativas de alertar o mundo para uma ação são fúteis: a presidente dos Estados Unidos, Janie Orlean (Meryl Streep), decide não fazer nada para proteger sua situação política. Na mídia, o assunto é tratado com leviandade, como parte de uma agenda de entretenimento para aumentar a audiência. Kate tem uma explosão de desespero no ar, mas o assunto não transcende além de algumas risadas e memes na Internet, antes que o mundo vire para o próximo. [Nota do tradutor: parecem até algumas cenas vistas aqui no Brasil].

Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence são as estrelas de Não Olhe Para Cima, filme que está dando o que falar nas redes sociais - e é também sobre essas mesmas redes sociais (crédito: divulgação / Netflix)
Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence são as estrelas de ‘Não Olhe Para Cima’, filme que está dando o que falar nas redes sociais – e é também sobre essas mesmas redes sociais (crédito: divulgação / Netflix)

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Se o filme fosse todo sobre o meteorito, ‘Não Olhe para Cima’ seria a antítese completa do clássico ‘Impacto Profundo’, de 1998. Nele, quando se descobre que um asteroide pode destruir a Terra, os Estados Unidos e a Rússia unem forças para lançar uma missão no espaço e desviá-la de seu curso. É um filme sobre esperança, já o de McKay é uma expressão de cinismo absoluto.

Mas é claro que esta sátira não é um típico filme de desastre sobre um meteorito, mas uma metáfora (francamente grosseira) sobre o desastre climático iminente e a flagrante inação dos líderes mundiais em favor do benefício econômico de alguns. A produção tenta (um pouco demais) traçar paralelos entre os acontecimentos recentes no cenário social e político americano.

A sátira imita a vida

Janie Orlean é consagrada como uma ex-estrela de televisão que se tornou presidente dos Estados Unidos, o que, apesar do gênero invertido, a coloca como uma paródia do ex-presidente Donald Trump. Se isso não fosse óbvio, as decisões do personagem reforçam ainda mais os paralelos.

Durante sua gestão, Trump foi razoavelmente criticado por decisões como, por exemplo, retirar os Estados Unidos do Acordo de Paris, estabelecido no âmbito da ONU para uma ação global contra as mudanças climáticas.

Outro exemplo foi a forma como lidou com a pandemia da covid-19, contrariando as recomendações de especialistas científicos (como o Dr. Anthony Fauci), escolhendo politizar a implementação de medidas de saúde para usá-las a seu favor. No filme, o presidente acaba criando o movimento “Não Olhe para Cima”, para negar a existência do cometa e apontá-lo como uma mentira criada para afetar sua popularidade.

Lembra de quando Donald Trump olhou diretamente para um eclipse? (Crédito: divulgação / Netflix)
Lembra de quando Donald Trump olhou diretamente para um eclipse? (Crédito: divulgação / Netflix)

De acordo com o próprio McKay, a personagem Janie Orlean é na verdade metafora de Trump, mas também uma amálgama de outros presidentes como George W. Bush, Bill Clinton e Barack Obama (este último muito “suave e acolhedor” com os ricos, diz o diretor).

Mas o paralelo especificamente com Trump é reforçado pelo personagem de Jonah Hill, que interpreta Jason Orlean, chefe de gabinete da Casa Branca… e filho do presidente. Um nepotismo inepto que lembra as nomeações de Ivanka Trump (filha do ex-presidente) e Jared Kushner (marido do último) para o gabinete Trumpista.

[Outra nota do tradutor: e que, por coincidência total – ou por essas pessoas agirem sempre dessa forma -, lembra também o nepotismo existente no Brasil, começando pelo atual ocupante do Palácio do Planalto, em mais um paralelo que tem sido muito apontado nas redes sociais].

E, claro, há também Peter Isherwell (Mark Rylance), o CEO da MASH, uma fabricante fictício de smartphones que satiriza a Apple, mas cuja influência política lembra mais Mark Zuckerberg e o Facebook.

Tal é o seu poder que, quando o governo dos Estados Unidos finalmente lança uma missão para destruir o cometa, Isherwell consegue fazer com que Orleans o cancele no meio do caminho. O motivo: o meteorito contém grandes quantidades de minerais necessários para fazer smartphones e, como bons capitalistas fora de controle, eles não estão dispostos a destruí-lo sem tentar tirar um lucro.

Não Olhe para Cima: Empresários que tomam decisões de vida ou morte para todo o planeta (Crédito: divulgação / Netflix)
Empresários que tomam decisões de vida ou morte para todo o planeta (Crédito: divulgação / Netflix)

Os paralelos com ‘Não Olhe para Cima’ são aparentes para qualquer pessoa que acompanha os meios de comunicação (ou pelo menos o Twitter) de forma recorrente. No entanto, esta é uma sátira superficial: a cacofonia da mídia na era da internet, obcecada em encontrar a tendência passageira do dia antes de jogá-la fora, também é óbvia para os telespectadores mais críticos.

E é que, de fato, em sua representação da absurda banalidade midiática, o filme mostra uma contradição que revela sua própria inutilidade, que quase beira a hipocrisia.

O paradoxo de ‘Não Olhe para Cima’

Um dos comentários que o filme mais se empenha em apresentar é o quanto nossa sociedade está absorta nas redes sociais: uma câmara de eco em que até mesmo uma ameaça à existência planetária é desgastada pela onda de memes e tweets até que se exaurir.

Na verdade, se fôssemos ameaçados por um cometa que colidirá com a Terra em seis meses, algo muito semelhante poderia acontecer: os especialistas apareceriam na televisão para um pequeno segmento, faríamos memes sobre eles – e estaríamos ocupados demais politizando o sujeito ou argumentando teorias da conspiração em vez de exigir que nossos líderes ajam. É basicamente a mesma coisa que acontece no Twitter em torno de notícias falsas sobre covid-19 ou sobre a figura de Greta Thunberg.

Em ‘Não Olhe para Cima’, chega um ponto em que o fato é indiscutível: o cometa está perto demais para negar sua existência. No entanto, o emaranhado da mídia já está complicado demais para ser desfeito. Enquanto o governo e o MASH se mantêm firmes, Mindy e companhia lançam uma campanha de mídia social (chamada “Olhe para Cima”) para exigir ação.

A gota d’água é quando Ariana Grande (sob o pseudônimo de Riley Bina no filme) organiza um show para aumentar a conscientização sobre a campanha: um grande evento de mídia que atrai a atenção de todo o mundo, mas que, no final das contas (alerta de spoiler) não chega a absolutamente nada. No fim, a última esperança do planeta é a tentativa de MASH de extrair minerais do meteorito, em uma missão que falha catastroficamente e condena a humanidade.

E aí está a grande contradição de ‘Não Olhe para Cima’: como sátira, tem óbvios ares de superioridade moral. “Este é um filme populista. É um filme para ser visto por muitas pessoas”, disse McKay à Vanity Fair, explicando que a ideia surgiu do desejo de fazer algo contra as mudanças climáticas.

Para todos os efeitos e propósitos, é tão inútil quanto um show da Ariana Grande em que esperamos sentados (e tuitando furiosamente) que um meteoro nos atinja: falamos dele, rimos das pessoas que são satirizadas, e pouco acontecerá além disso. “A humanidade se tornou um espetáculo por si mesma”, disse o filósofo e crítico Walter Benjamin. “Sua autoalienação atingiu um grau que lhe permite vivenciar sua própria destruição como um prazer estético de primeira ordem.”

Se algo está claro com este filme é que qualquer mudança estrutural, nas esferas política e econômica, tem que ser instigada por alguma forma de ação coletiva mais radical do que se engajar em uma discussão com estranhos nas redes sociais para se esquecer do assunto algumas horas depois – o que certamente acontecerá quando ‘Não Olhe para Cima’ atingir seu verdadeiro propósito em alguns meses: ser indicado para alguns prêmios, talvez ganhar alguns deles, para ser esquecido antes de abril chegar.

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Publicado primeiro na edição mexicana do Filmelier News.

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