“Nasceu de uma vontade de falar sobre coragem”, diz diretora de ‘A Primeira Morte de Joana’ “Nasceu de uma vontade de falar sobre coragem”, diz diretora de ‘A Primeira Morte de Joana’

“Nasceu de uma vontade de falar sobre coragem”, diz diretora de ‘A Primeira Morte de Joana’

Ao Filmelier, Cristiane Oliveira fala sobre o nascimento de ‘A Primeira Morte de Joana’ e a importância dos temas discutidos no longa-metragem

Matheus Mans   |  
5 de maio de 2023 10:00

Enquanto assistia ao filme A Primeira Morte de Joana, não parava de pensar como Cristiane Oliveira é uma grande cineasta. Diretora do também elogiado Mulher do Pai, pouco abaixo deste seu novo trabalho, ela é inegavelmente uma cineasta que sabe se comunicar com o público e, principalmente, compreender sensibilidades que não são facilmente abordadas até mesmo no cinema, um dos espaços mais ousados em termos de conversas e reflexões. Com ecos de Céline Sciamma (Retrato de uma Jovem em Chamas),ela é uma das grandes cineastas dessa geração.

Por isso é tão importante ouvir o que ela tem a dizer com A Primeira Morte de Joana, que estreou nos cinemas nesta quinta-feira, 4 de maio. Na trama, acompanhamos o amadurecer de Joana (Letícia Kacperski) ao lado da colega Carol (Isabela Bressane). A primeira vive uma fase de curiosidade, até mesmo envolvendo a solteirice da tia falecida. A outra já partiu para as descobertas — e sofre com isso. Lembra um pouco as descobertas que vemos em Close, mas pelo lado feminino da coisa e com particularidades que só uma cineasta da grife de Cristiane Oliveira poderia nos mostrar.

Cena do filme A Primeira Morte de Joana
Filme fala sobre crescimento, amadurecimento e necessidade de lidar com temas que antes “não existiam” (Crédito: Lança Filmes)

Ainda que tenha alguns deslizes em sua execução, A Primeira Morte de Joana conta essa história com uma delicadeza rara. Com sensibilidade. Logo de cara, difícil não fazer paralelos com a obra da francesa Sciamma. Não por conta de Retrato de uma Jovem em Chamas, mas mais pela semelhança vibrante com Tomboy. É a descoberta, o avanço, a sede.

“A história da Joana nasceu de uma vontade de falar sobre coragem, a coragem para ser quem você realmente é diante das violências cotidianas que vivemos nesse processo”, resume Cristiane ao Filmelier. Na conversa, que fala sobre o nascimento do filme, sobre o que é “ser mulher” e os desafios do amadurecimento, a diretora aponta para detalhes preciosos do longa-metragem que poderiam passar batidos em uma primeira olhada. É uma conversa que só faz o filme engrandecer e compra aquilo que disse no início: temos sorte de viver na mesma época de Cristiane.

Confira, a seguir, a conversa completa do Filmelier com a cineasta Cristiane Oliveira sobre A Primeira Morte de Joana:

Filmelier: Me conta sobre a ideia do filme.

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Cristiane Oliveira: A história da Joana nasceu de uma vontade de falar sobre coragem, a coragem para ser quem você realmente é diante das violências cotidianas que vivemos nesse processo. A personagem da tia foi inspirada em uma mulher próxima a mim que morreu virgem aos 70 anos e nunca tinha namorado ninguém. As outras personagens surgiram de experiências pessoais minhas e da corroteirista Silvia Lourenço. Pensamos sobre os fatores que atravessam nossa formação de afetos, como expectativas sociais de gênero, preconceitos sobre a orientação sexual, racismo, classismo. Desde a escola primária aprendi o que era certo “para os meninos” ou “para as meninas”, já percebia também que certos tipos de humilhação nas brincadeiras eram reservados para as meninas. Além disso, lembro do dia em que alguém disse que eu deveria gostar de meninos, não de meninas. Como medos eram criados pela urgência de definir o que era certo para cada gênero, eu comecei a sentir que o gênero não deveria ser uma sentença de opressão e que a sexualidade deveria ser vista como um desenvolvimento natural dos afetos e da relação com o corpo. Todos esses sentimentos e vivências guiaram a criação das personagens.

Filmelier: A Primeira Morte de Joana tem mais personagens femininas, mas o patriarcado está sempre ali, por trás, espreitando e pressionando. Como foi, em termos de roteiro, falar sobre essa repressão do ponto de vista feminino, dessas personagens?

Cristiane: Fui muito guiada pela diversidade do “ser mulher” em A Primeira Morte de Joana, aspecto que aparece até mesmo nos conflitos entre as personagens – todas querem poder exercer sua “liberdade”, mas esse é um conceito que pode se modificar de acordo com o recorte de idade, classe social, origem da mulher. Como entender e acolher a luta da outra é uma questão que levanta uma visão mais interseccional, o que se conecta muito a outro conflito da adolescência: se encaixar em um modelo. A vontade de se encaixar em um grupo às vezes leva a uma dificuldade de acolher as que são diferentes de nós. É do processo de amadurecer superar isso.

Filmelier: Como foi o trabalho com as duas atrizes, Letícia Kacperski e Isabela Bressane? Afinal, elas lidam com um tema complexo.

Cristiane: Ambas estavam na faixa etária das personagens do filme, portanto foi um processo que envolveu muito diálogo conjunto com os pais, desde que foram escolhidas para seus respectivos papeis. Formamos um grupo de troca, de apoio, a partir de muita conversa sobre como elas já viviam os conflitos das personagens. E foi muito bom perceber que elas são de uma geração que vê o respeito à diversidade sexual e de gênero como algo natural. E essa vontade de ouvir me guiou também na direção: não dei o roteiro num primeiro momento, eu contava as situações e ouvia o que elas tinham a dizer a respeito, debatíamos como a personagem reagiria e reescrevíamos as falas juntas, a partir de sugestões delas mesmas.

Filmelier: O espaço também influencia muito na narrativa. Como foi a escolha da locação e como foi seu mergulho nesse lugar?

Cristiane: Entre 2005 e 2007, quando saía de Porto Alegre em direção às praias do litoral, eu passava pela região de lagoas e vi aquela paisagem se transformar. São mais de 20 lagoas, que compõem um sistema único no mundo por causa do tamanho de sua extensão: são quase 700km de água doce. A paisagem ganhou gigantes cata-ventos brancos com a chegada de um enorme parque eólico e eu vi ali o cenário para situar a história de Joana, uma adolescente também em transformação. O vento constante que atraiu essa empreitada tecnológica foi uma força desafiadora na hora de filmar. Só que o vento é parte da narrativa e para mim se conecta muito com a força dos afetos, é uma força da natureza que você pode tentar direcionar, mas não parar, ela segue em frente, com vida própria. Além disso, o morro de mata virgem que aparece no filme é um local muito impressionante. A primeira vez que estive lá, eu estava entrando sozinha e estanquei: o som dos animais que vivem ali formavam uma massa sonora intensa, parecia um escudo de proteção que avisava para andar com respeito. É um ambiente muito especial, no qual eu mergulhei com pesquisa e interação com a comunidade local, que acolheu nossa produção de forma muito generosa.

A cineasta Cristiane Oliveira, mente criativa por trás de A Primeira Morte de Joana (Crédito: Lança Filmes)

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Filmelier: Tanto A Primeira Morte de Joana quanto Mulher do Pai falam muito sobre o choque, a estranheza que nasce das relações familiares. Qual a importância desse tema pra você?

Cristiane: A mulher cresce com a cobrança de constituir família. Essa família idealizada muitas vezes não encontra eco na realidade. A busca por conhecer diferentes “formas de família” me interessa, uma investigação para descontruir conceitos pré-estabelecidos talvez. A família é uma estrutura em que os conceitos de autonomia versus cuidado muitas vezes se chocam e o que se vê como proteção pode ser uma violência. Respeitar a intimidade do outro é algo que não está dado, isso se aprende e deveria ser ensinado desde a infância.

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