Crítica de ‘EO’: vida de burro Crítica de ‘EO’: vida de burro

Crítica de ‘EO’: vida de burro

‘EO’ foi concorrente ao Oscar de Melhor Filme Internacional

Lalo Ortega   |  
2 de junho de 2023 09:20

Filmes sobre animais arrancados pelo acaso em jornadas épicas existem (talvez surpreendentemente) em quantidade suficiente. Temos, por exemplo, propostas mais inocentes e infantis como A Incrível Jornada ou A Caminho de Casa. EO – vencedor do Prêmio do Júri em Cannes e que chega aos cinemas em 9 de março – poderia ser descrito como uma variação adulta dessa fórmula.

No entanto, não podemos deixar de mencionar – de forma bastante óbvia – o clássico de Robert Bresson, A Grande Testemunha (Au Hasard, Balthazar, de 1966). Se a relação não fosse evidente – ambas protagonizadas por burros – o filme do octogenário Jerzy Skolimowski foi concebido, essencialmente, como uma interpretação contemporânea de Bresson.

Para os conhecedores do clássico francês, essas informações já fornecem a chave dos interesses temáticos de EO. No entanto, formalmente, esta versão de Skolimowski não poderia ser mais diferente.

EO é a odisseia de um burro arrancado de sua casa (Crédito: Zeta Filmes)

Sobre o que trata o filme EO?

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Assim como seu congênere Baltasar, o burrinho EO é vítima dos caprichos do acaso e dos altos e baixos da natureza humana. Sua história começa como um animal de circo, onde ele vive ao lado de sua amada Cassandra (Sandra Drzymalska). No entanto, ele é arrancado de seu lar quando uma nova legislação determina que os circos cometem crueldade contra os animais e que todos eles devem ser realocados.

Assim, resumidamente, o burro fica à deriva em uma odisseia tão perigosa quanto engraçada, cruel e terna ao mesmo tempo. Ele compartilha um estábulo com garanhões, trabalha em fazendas para crianças com síndrome de Down, se perde na floresta e acaba em uma mansão, entre outras paradas incomuns.

Embora suas jornadas sejam superficialmente diferentes, a de EO e a de Baltasar são, em essência, a mesma. O burrinho no filme de Bresson também é arrancado de sua liberdade inocente para, em seguida, ser separado de sua amada humana (Anne Wiazemsky) e ser usado como animal de carga. São dois animais que passam de mão em mão, fruto de interesses individuais ou caprichos da sorte.

EO reinterpreta A Grande Testemunha, de Robert Bresson (Crédito: Janus Films)

No entanto, enquanto Bresson prefere que seu burro seja o condutor de uma narrativa que geralmente se concentra mais nas circunstâncias humanas, Skolimowski coloca o seu como protagonista, a partir de cuja perspectiva observamos a humanidade. Paradoxalmente, também nos vemos nele.

EO de Skolimowski vs. Baltasar de Bresson

O estilo visual e performaticamente minimalista de Bresson é, aqui, substituído por uma perspectiva narrativa quase inteiramente subjetiva, exaltada por uma experimentação visual que, de fato, nos ajuda a ver o mundo de EO pelos olhos de um burro.

Skolimowski recorre a recursos fotográficos e tecnológicos contemporâneos para exaltar a experiência de seu animal protagonista. A visão dos drones acentua a enormidade do mundo – e a pequenez do burro e de nós nele. A lente grande angular distorce a visão ao nível do solo nos planos subjetivos. A luz de estrobo vermelha, nitidamente expressionista, exacerba a violência onipresente e muitas vezes injusta.

Visualmente, há passagens que beiram o surrealismo e o expressionismo (Crédito: Zeta Filmes)

E ao contrário de sua referência monolítica, Skolimowski não foge dos acentos emocionais, pelo contrário. Desde o início, por meio de recursos como bolos de aniversário e simbolismos como um sapo sendo arrastado pela força do rio, o diretor deixa claro sua intenção de nos emocionar com o animal para nos identificarmos com ele, sem chegar a humanizá-lo. Um recurso manipulativo, talvez, devido à nossa propensão a sentir pelos mais indefesos?

Seria preciso argumentar o contrário. É possível que sintamos ainda mais compaixão pelo burro graças à sua inocência inerente. Talvez nos compadeçamos dos animais porque os vemos como mais indefesos do que nós. Mas, acaso nós também não somos iguais, perambulando pela Terra à mercê da compaixão fortuita e do acaso mais brutal?

EO é, graças a essa inocência com a qual todos podemos nos identificar, uma obra de arte que reflete o mundo em toda a sua beleza e feiura, sua ternura e violência, sua humanidade e crueldade. E, sem hesitar, nos confronta com a ideia de que todos somos como um burrinho, à mercê do que a sorte e seus caprichos têm preparado para nós.

EO está em cartaz nos cinemas. Clique aqui para comprar ingressos.

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