Crítica de ‘Quem Fizer Ganha’: anti-‘Karate Kid’? Crítica de ‘Quem Fizer Ganha’: anti-‘Karate Kid’?

Crítica de ‘Quem Fizer Ganha’: anti-‘Karate Kid’?

Com ‘Quem Fizer Ganha’, o diretor Taika Waititi retoma uma história verídica sobre perseverança e esperança, com nuances problemáticas

Lalo Ortega   |  
15 de dezembro de 2023 08:43

Até que ponto é válido distorcer a verdade em prol do drama ou entretenimento na ficção histórica? Pergunta recorrente à sombra da recente epopeia histórica dirigida por um cineasta consagrado sobre certo imperador francês. Embora o diretor neozelandês Taika Waititi (Jojo Rabbit) aposte em algo menor e humorístico com Quem Fizer Ganha (Next Goal Wins), a pergunta continua válida.

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“Tive que distorcer a verdade”, disse Waititi no Festival de Toronto ao apresentar sua comédia, que chega aos cinemas mexicanos em 28 de dezembro. E acrescentou depois: “Nunca deixe que a verdade atrapalhe o caminho de uma boa história!”.

Ficcionar deve ter, no mínimo, objetivos de entretenimento, se não estéticos e didáticos. Com Quem Fizer Ganha, que toma seu tema e título emprestados do documentário homônimo de 2014, Waititi parece apontar nas três direções, em diferentes proporções, e não sem certas problemáticas em seu tratamento dos fatos.

Revertendo papéis

Em termos amplos, o filme de Waititi se inspira na história do treinador Thomas Rongen, que se tornou técnico da seleção nacional de futebol da Samoa Americana após sua infame derrota para a Austrália em 2001, com um placar de 31-0 (o recorde para a pior diferença de gols em uma partida internacional).

Em Quem Fizer Ganha, Michael Fassbender interpreta Rongen como um rabugento com problemas de álcool, que aceita o trabalho como treinador da Samoa Americana porque não tem outra opção: foi demitido pela Major League Soccer dos Estados Unidos, pouco depois de se separar de sua esposa, Gail (Elisabeth Moss), que também faz parte da diretoria.

O protagonista, portanto, está contra as cordas após o momento mais humilhante de sua vida. Rongen, assim como sua nova equipe, atingiu o fundo do poço. No entanto, ele aceita o trabalho a contragosto, quase com condescendência para com os jogadores que considera incompetentes. Sua difícil adaptação à pequena e precária sociedade da Samoa Americana não facilita as coisas.

No início de Quem Fizer Ganha, a adaptação de Rongen à Samoa Americana não é fácil (Crédito: 20th Century Pictures)
No início de Quem Fizer Ganha, a adaptação de Rongen à Samoa Americana não é fácil (Crédito: 20th Century Pictures)

Como tantos outros filmes esportivos, a jornada dos personagens em Quem Fizer Ganha é em direção à redenção. No caso da equipe, redimir-se significa marcar um único gol que, aparentemente, não conseguiram em toda a sua história. No caso de Rongen, está em encontrar paz consigo mesmo e com o ambiente ao seu redor.

Nessa jornada, Waititi faz referências a vários clássicos cinematográficos, mas mais a Karate Kid do que a qualquer outro filme. Além da icônica pose da garça ou das menções a “polir, encerar”, essas alusões têm outro nível de leitura.

Porque além de sua condição como clássico do cinema dos anos 80, uma crítica comum – e compreensível – a Karate Kid é o exotismo com que retrata a cultura japonesa. A história de Daniel-san (Ralph Macchio) e o senhor Miyagi (Pat Morita) é a do garoto fraco iluminado pelo estrangeiro místico, que é representado a partir do clichê e do estereótipo de um olhar estrangeiro, e contribui para o objetivo de autorrealização individual de seu pupilo.

Waititi, cineasta de ascendência maori, inverte os papéis. Seu protagonista – ocidental, branco, europeu – aterra em uma cultura estranha que não conhece nem entende, mas cujos ensinamentos o levam a questionar seus conceitos de felicidade e sucesso, expressos na sociedade de onde vem, na vitória, na dominação, na reputação e no ego, mais do que na formação de uma comunidade ou na alegria.

Será essa uma “boa história”, em termos de Waititi? Talvez. O diretor e co-roteirista busca divertir, inspirar e nos apresentar outro conceito de felicidade diferente do padrão ocidental. No entanto, as licenças criativas que ele se permite podem resultar problemáticas.

Quem Fizer Ganha e os sapatos de Scarlett Johansson

A primeira cena do filme conta com o próprio Waititi, no papel do sacerdote local que atua como narrador. Imediatamente, ele admite estar ciente do ato de ficcionalizar: a história, afirma, terá algumas melhorias. Em teoria, e afinal de contas, essas melhorias devem cumprir um propósito dramático: não há tensão se não houver obstáculos.

É preciso dizer que Quem Fizer Ganha toma muitas liberdades nesse sentido, o que não é questionável em si mesmo. O que é questionável são as decisões que ele toma para tornar sua narrativa divertida.

O problema não é o diretor optar por um humor quase pueril, ou ridicularizar por momentos o estilo de vida da Samoa Americana – recurso que, como ele mesmo argumentou em entrevistas, é para zombar de sua própria cultura. Considerando isso, as situações inverossímeis em que seus personagens se encontram se tornam até engraçadas.

No entanto, o diretor adota um tratamento problemático de um aspecto específico dos eventos, e simplesmente preguiçoso na revelação de informações. O primeiro é a relação de Rongen com Jaiyah Saelua (Kaimana), jogadora do gênero fa’afafine da Samoa Americana, e primeira mulher trans na história a competir em uma partida de eliminatórias da FIFA. O segundo é a explicação da tragédia pessoal de Rongen.

A decisão de mudar o relacionamento entre Rongen e Jaiyah em Quem Fizer Ganha é questionável (Crédito: 20th Century Pictures)
A decisão de mudar o relacionamento entre Rongen e Jaiyah em Quem Fizer Ganha é questionável (Crédito: 20th Century Pictures)

Quem Fizer Ganha representa a relação entre Rongen e Jaiyah como confrontadora, algo que não aconteceu na realidade. Embora as coisas melhorem eventualmente entre eles no filme, ela é inicialmente reduzida ao mesmo tratamento indignante que os outros jogadores por parte de Rongen. Ela é reduzida, assim, a mero alvo de piadas.

É uma decisão questionável, principalmente quando consideramos o quão antiquada ela parece em pleno 2023. Percebe-se como um humor retirado de comédias dos anos 90 – ou seja, de 30 anos atrás ou mais. O segundo ponto é que, enquadrado na forma como retrata a cultura da Samoa Americana, o assunto acaba paradoxalmente parecendo exotismo.

Por outro lado, existe a tendência de Waititi em dosificar informações de uma maneira que, quando finalmente reveladas por completo, acabam dando uma reviravolta de 180 graus no tom do filme. Isso aconteceu em Jojo Rabbit quando, por meio de um olhar repentino para os sapatos de seu cadáver pendurado, a comédia antinazista nos revela a morte do personagem de Scarlett Johansson.

Quem Fizer Ganha segue uma via semelhante ao explicar, de forma súbita no clímax, o conflito interno pelo qual Rongen adotou sua atitude em relação ao mundo. Embora baseada na verdade, a revelação acaba por parecer uma resolução preguiçosa que, além disso, tem como objetivo fazer com que simpatizemos com um personagem que passou todo o filme minimizando os outros.

Para os seguidores de Waititi e seu humor, Quem Fizer Ganha proporcionará um momento fenomenal. Para o público em geral, o mesmo… se não pensarmos demais. Fazer isso simplesmente revela licenças criativas descuidadas e negligentes em relação à sociedade que o filme pretende retratar sob uma luz favorável.

Quem Fizer Ganha chega aos cinemas em 14 de dezembro.

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