Filmes de terror realmente precisam nos “assustar”? Filmes de terror realmente precisam nos “assustar”?

Filmes de terror realmente precisam nos “assustar”?

Uma reclamação comum em torno de certos filmes de terror é que “não assustam”. Mas é isso que torna bom um filme do gênero?

Lalo Ortega   |  
12 de julho de 2021 09:10
- Atualizado em 13 de julho de 2021 14:52

Em todo o mundo, o cinema de terror é um dos gêneros preferidos do público. Porém, nos últimos anos, é comum ouvir e ler certa reclamação sobre alguns expoentes do gênero por parte de seus telespectadores mais assíduos: “Não é assustador.”

A reclamação refere-se, naturalmente, a quando os filmes provocam um susto ou sentimento momentâneo de medo, popularmente conhecido como jumpscare – sustos de pulo, em uma tradução livre para o português.

E é fácil perceber porquê: essa é uma técnica que pode elevar a adrenalina do público de forma tão repentina e simples que se torna extremamente popular – principalmente entre as produções mais comerciais.

No entanto, a capacidade de “assustar” é um indicativo da qualidade de tal filme? Os filmes de terror “deveriam” causar choques? O famoso jumpscare é essencial para o gênero?

Se dermos uma breve olhada na história dos filmes de terror, a resposta teria que ser não. Mas vamos analisar detalhamente.

Como surgiu o cinema de terror?

Há quem defenda que o gênero nasceu com o próprio cinema, se levarmos em conta as reações do público da época à ‘A Chegada de um Trem à Estação’ (L’Arrivée d’un train en gare de La Ciotat), em 1896, dirigida pelos irmãos Lumière. A anedota é famosa: a cinematografia ainda era uma novidade e os espectadores acreditavam que o trem sairia da tela para atropelá-los. Foi a imagem de algo desconhecido que causou surpresa e terror.

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Se avançarmos alguns meses, encontramos o que é considerado o primeiro filme de terror: ‘A Mansão do Diabo’ (‘Le Manoir du diable’), de 1896, de Georges Méliès (‘Viagem à Lua’). O curta narra um encontro com o Diabo, com elementos de magia, transformações e seres que aparecem e desaparecem.

O objetivo do história, no entanto, era provocar admiração e não necessariamente medo. Méliès era um ilusionista que encontrou na edição uma forma de criar truques visuais. Porém, devido ao seu tema e elementos (há um personagem que se transforma de morcego em homem, como um vampiro), é considerado o primeiro filme de terror.

Assista abaixo ao filme de Méliès:

Foi na Alemanha, durante a década de 1920, que os filmes de terror deram alguns dos passos mais significativos em sua evolução. Assim como a arte expressionista manifestou angústia existencial e uma realidade opressora de forma subjetiva, o cinema expressionista fez o mesmo com suas histórias e estéticas.

Dentro do movimento expressionista, duas produções mais relevantes são ‘O Gabinete do Doutor Caligari‘, de 1920; e ‘Nosferatu‘, de 1922. A primeira, analisada pelo sociólogo Siegfried Kracauer em seu livro ‘De Caligari a Hitler’, foi uma alegoria da mentalidade alemã após a Primeira Guerra Mundial, terreno fértil para o surgimento do nazismo. A segunda foi lida como uma parábola da xenofobia, do medo do outro, do que é desconhecido.

Nosferatu, un clásico del cine de terror
A imagem da sombra nos Nosferatu tem sido uma das mais influentes – e parodiadas – da história do cinema (Imagem: Film Arts Guild)

Ambos os filmes são clássicos fundamentais do cinema de terror, e nenhum deles faz uso dos jumpscares. O que define o gênero então?

Deixando para trás os icônicos Monstros da Universal, o crítico Steven Schneider e o produtor Jonathan Penner argumentam em seu livro ‘Horror Cinema’, que o terror deu mais um grande passo evolutivo em Hollywood. Graças a produções como ‘Psicose‘, de Alfred Hitchcock, que trocou monstros por seres humanos psicologicamente reais e, portanto, mais perturbadores.

O próximo passo viria entre os anos 1970 e 1980, com ‘O Exorcista’ e ‘O Iluminado’ que, além de incluir elementos sobrenaturais, os utilizou para explorar temas como culpa, fragilidade humana diante do desconhecido, alcoolismo e violência doméstica.

Na segunda metade do século XX, o horror no cinema havia deixado espectros e monstros inofensivos para trás, para expressar temas reais com força. Como Schneider e Penner escrevem:

“O terror é real. É físico. É a realidade que deve ser enfrentada. O assassino na sua frente, mostrando seus dentes de predador para a presa. É o cônjuge morto no chão. É a carne mole no espelho e o menino correndo atrás da bola, alheio ao caminhão que se aproxima. É o inseto que sai do seu ouvido. Eles são os nazistas no poder”.

Assim, unem as definições de terror e horror (distinção que não existe propriamente em inglês, já que são todos filmes de terror): “terror é suspense, medo. A preocupação de que algo terrível aconteça (…). O horror é o presságio cumprido ”.

Quando o jumpscare chegou aos filmes de terror?

É difícil saber precisamente “nascimento” do jumpscare ao cinema, ou quando eles começaram a ser usados ​​(o próprio ‘Psicose’, lançado em 1960, tem exemplos disso). No entanto, as estatísticas do site Where’s the Jump indicam que a técnica do susto do salto começou a se tornar popular na década de 1970 e atingiu seu pico no século XX, durante os anos 1980.

O que aconteceu nessas décadas? Foi a “idade de ouro” do subgênero slasher do terror, cujas as narrativas envolvem assassinos em série, traumas do passado que ressurgem e sequências de vítimas – geralmente adolescentes – perseguidas pelo assassino, com mortes brutais e repentinas.

Embora o jumpscare tenha sido utilizado por outros tipos de produções naquele período (o fim de ‘Carrie, a Estranha’ é um dos exemplos mais famosos), esse é um dos recursos mais usados nos slashers, que começou seu apogeu com o ‘Halloween’, o original de 1978. Outros exemplos famosos são ‘A Hora do Pesadelo’ e ‘Sexta-Feira 13’, também famosos por seus desfechos.

Nas mesmas estatísticas, o site Where’s the Jump aponta, com base em uma amostra de 250 longas-metragens, que durante a década de 1980, os sustos de pulo chegaram a estimativa de 9,5 ocorrências por filme, seu ponto mais alto durante o século XX.

No entanto, durante o século XXI, essa média aumentou para mais de 10 por filme. “Em nosso banco de dados, 21 filmes têm mais de 20 pulos de susto”, diz o site. “Destes, 13 são da década de 2010”, o que representa mais da metade das produções lançadas.

E, claro, se falamos sobre sucessos de bilheteria de terror, temos que falar sobre ‘Invocação do Mal’ e seu icônico susto no porão:

Claramente, a técnica do susto funciona: a história ganhou duas sequências diretas mais uma série de spin-offs, juntos arrecadando mais de US$ 2 bilhões na bilheteria global, contra um orçamento de produção de menos de US$ 180 milhões.

É uma fórmula que faz maravilhas nos cinemas e eles dizem que “não é preciso consertar o que não está quebrado”. Ao menos que, claro, se quebre por uso excessivo.

Na melhor das hipóteses, o truque fica cada vez mais gasto, perdendo sua eficácia e simplesmente se tornando um clichê que deixa de surpreender, exatamente o que deveria fazer em primeiro lugar. E, no pior cenário, começa a se tornar a única expectativa para filmes de terror como um todo.

Muito mais do que “sustos”

Isso significa que essas produções devem ter sustos? Para nada? Se forem bem colocados, é um recurso mais do que eficaz. Porém, como qualquer técnica, deve estar a serviço de uma história e um pano de fundo interessante.

Para dar um exemplo de um filme recente que usa os jumpscare, podemos falar sobre ‘O Que Ficou Para Trás’. Essa é uma história de terror psicológico que fala sobre um casal de refugiados do Sudão do Sul que recebe asilo na Inglaterra.

O longa-metragem assume o arquétipo da casa mal-assombrada, mas dá um toque mais interessante a ele. Os “fantasmas” que assombram o casal líder, escondidos entre as paredes, são os horrores da guerra que eles querem deixar para trás. Não é, então, uma casa mal-assombrada, mas uma “maldição” que eles carragem. É um terror de origem social.

Crítica | O Que Ficou Para Trás (His House, 2020)
‘O Que Ficou Para Trás’ está disponível na Netflix e rendeu um BAFTA para o diretor Remi Weekes (Reprodução/NETFLIX)

Essa mesma riqueza pode ser transferida para outros contextos. O familiar, por exemplo, como em ‘Hereditário’, primeiro filme de Ari Aster, que brinca com a ambigüidade ao esmiuçar os limites entre o sobrenatural e os piores segredos de um legado familiar.

Uma proposta semelhante é a de ‘Relíquia Macabra’, o longa-metragem de estreia de Natalie Erika James. Seu enredo é um tanto simplista em relação às grandes produções do gênero, e a verdadeira natureza do “mal” que espreita os três protagonistas – avó, mãe e filha – pode até ser deduzida logo no começo.

Tematicamente, essa história e o drama vencedor do Oscar, ‘Meu Pai’ são parecidos, ambos abordando o declínio mental da velhice. Mas eles não poderiam ser mais diferentes um do outro. Os primeiros indícios de terror e de algo ao monstrusoso, são a avó se transformando em uma criatura devido a perda de sua identidade por conta da demência.

Resumindo, o ‘Relíquia Macabra’ não usa o recurso do susto do salto, mas sim a atmosfera da incerteza e do horror de ver um ente querido definhar.

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O horror de ‘Relíquia Macabra’ reside na jornada sombria para a insanidade (Divulção/Tulip Pictures)

Então, os filmes de terror são apenas “filmes de terror”? Definitivamente não, porque o gênero oferece uma das mais amplas gamas de técnicas e temas para semear sentimentos inesperados e intensos no público.

Esse tipo de cinema não trata apenas de susto. Pode incomodar, chocar e perturbar em doses pequenas, mas constantes, para nos confrontar como público com o pior de nós mesmos a uma distância segura. A derradeira experiência de catarse.

Publicado originalmente na edição mexicana do Filmelier News.

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