‘Judas e o Messias Negro’, ‘Os 7 de Chicago’ e a falta de outras histórias negras no cinema ‘Judas e o Messias Negro’, ‘Os 7 de Chicago’ e a falta de outras histórias negras no cinema

‘Judas e o Messias Negro’, ‘Os 7 de Chicago’ e a falta de outras histórias negras no cinema

Em 2021, o Oscar conseguiu recorrer à diversidade e indicar um grande número de produções sobre narrativas negras, mas será que é o suficiente?

15 de abril de 2021 13:03
- Atualizado em 16 de abril de 2021 15:23

Os Panteras Negras não são totalmente desconhecidos para o cinema. Afinal, o grupo político já apareceu algumas vezes em Hollywood – e, agora em 2021, temos dois filmes com a organização indicados ao Oscar: ‘Judas e o Messias Negro’ e ‘Os 7 de Chicago’ estão nas categorias de melhor filme, ator coadjuvante, roteiro original, fotografia e mais. Esse, no entanto, é mais um passo em um longo caminho sobre representatividade na sétima arte.

Felizmente ou infelizmente, o Academy Awards ainda dita referência não só no cinema, como na cultura como um todo. E sabemos que falta espaço para diversidade – especificamente falando sobre pautas étnico-raciais.

Esse cenário começou a mudar em 2018 com ‘Infiltrado na Klan’, que deu o primeiro Oscar de melhor roteiro adaptado para Spike Lee. Isso é importante pois produções sobre a história afro-americana ainda são pontuais e que muita gente alheia à temática desconhece.

Exemplos mais conhecidos de filmes sobre os Panteras Negras são: ‘Malcolm X’ (1992), filme reconhecido em premiações; ‘A Noite Que Nos Domina’ (2010), que inclusive é de uma diretora jamaicana; o documentário ‘Os Panteras Negras: Vanguarda da Revolução’ (2015); o longa ‘Panteras Negras’ (1995); e claro, boa parte dos longas-metragens de Spike Lee, com destaque para ‘Uma História de Huey P. Newton’ (2001).

Os Panteras Negras em ‘Os 7 de Chicago’ (Foto: Divulgação / Netflix)

Representatividade negra no Oscar

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Para analisar as produções que concorrem ao Oscar 2021 e esse contexto cinematográfico, conversamos com Mariana Canuto, professora de português e pesquisadora de questões étnico-raciais. Com os concorrentes do Oscar trazendo histórias afro-americanas, Canuto analisa esse tipo de representação no cinema e nas premiações.

“Toda vez que um ator ou atriz negra ganha um Oscar, por exemplo, raramente são colocados no papel principal, quase sempre é o de coadjuvante. E, geralmente, são personagens subalternos, humilhados e afins. Esse é um ponto muito importante, quando pensamos em racismo – sabemos que é estrutural, então acaba sempre deixando as pessoas negras nesse lugar inferior”, pontua Mariana Canuto.

Um exemplo da situação mencionada pela professora é o de Hattie McDaniel, primeira negra vencedora do Oscar pelo papel de uma servente no longa ‘…E o Vento Levou’, em 1940.

“É importante trazer
o negro sob outras
perspectivas”

“As coisas mudam, mas no fundo elas não mudam. Podemos citar Viola Davis, em ‘Um Limite entre Nós’, uma atriz que já tinha uma carreira sólida e importante ganhando Oscar de melhor atriz coadjuvante, sendo que ela era claramente uma das protagonistas do filme”, continua.

“Na sociologia chamamos de controle de imagem, no cinema não é diferente, a Lupita Nyong’o ganhou um Oscar, que ótimo, mas ganhou como melhor atriz coadjuvante – e não principal – e fazendo papel de escrava em ’12 Anos de Escravidão’, num lugar de humilhação que é onde as pessoas negras precisam estar. É importante trazer o negro sob outras perspectivas, cadê o negro em uma história feliz, diferente?”, completa Mariana.

Nisso tudo, talvez o caso que destoe mais seja o de ‘Moonlight: Sob a Luz do Luar‘: vencedor da categoria principal em 2017, a produção traz um enredo sobre amadurecimento e sexualidade protagonizado por negros.

Esse cenário se encaixa bem com as indicações de ‘Judas e o Messias Negro’. Daniel Kaluuya e Lakeith Stanfield estão concorrendo ao Oscar na categoria de melhor ator coadjuvante, um contra o outro. Apesar do longa mostrar certa confusão em quem realmente é o protagonista da história, não deixa se ser estranho ambos disputarem o prêmio como secundários, sendo que a produção foi feita com foco nos dois personagens.

O tom revolucionário de ‘Judas e o Messias Negro’

E por falar no filme, ‘Judas e o Messias Negro’ é poderoso no sentido de ressoar e, talvez, por conta disso abra caminho para mais narrativas, que não sejam tão focadas na cultura norte-americana inclusive.

Mas, um dos grandes diferenciais é que o longa não pinta os Panteras Negras como os inimigos, muito pelo contrário: ele mostra o propósito deles e porque uma revolução era (e continua sendo) importante. Claro que há o conflito com o FBI, justamente por conta desse poder que o movimento político demonstrava.

O longa aborda uma parte da vida de Fred Hampton, presidente da filial de Illinois e vice-presidente do Partido dos Panteras Negras, que foi executado pelo FBI aos 21 anos, em 1969. O assassinato só aconteceu pois o Departamento de Justiça dos Estados Unidos tinha um infiltrado, William O’Neal, que os ajudou no golpe. Hampton morreu, mas seu legado segue vivo, assim como a luta pelo fim da brutalidade policial que acontece até hoje.

Daniel Kaluuya e Lakeith Stanfield estrelam ‘Judas e o Messias Negro’ (Foto: Divugalção / Warner Bros.)

“Mesmo não sendo um filme tão bom, ‘Judas e o Messias Negro’ [está] falando de um movimento extremamente importante, que são os Panteras Negras, e que de certa forma precisava fazer parte desse mundo, por que agora o Oscar se ‘preocupa’ de alguma forma, então ele precisa entrar ali”, diz Mariana Canuto.

‘Judas e o Messias Negro’ tem um ritmo lento, por tentar se aproximar de uma biografia, mas acaba narrando apenas uma parte da vida de Hampton, justamente a que envolve O’Neal. E é esse ponto do roteiro que incomodou a pesquisadora de questões étnico-raciais.

“Em ‘Judas e o Messias Negro’, é mostrado um tipo de controle sobre os negros, que são rivais, que brigam entre si e que não conseguem se resolver. Ao mesmo tempo que a negritude é muito diversa, assim como a branquitude, nos filmes parece que não nos unimos e estamos sempre em conflito. Como que a gente quer que as pessoas sejam antirracistas sendo que entre nós não conseguimos nos entender?”.

O’Neal é colocado como antagonista de Hampton e mesmo que a vida real tenha seguido esse rumo, Mariana Canuto pontua que daria para abordar a vida de Fred Hampton sem colocar a rivalidade com Bobby O’Neal.

“Mesmo que o filme conte uma história baseada em fatos reais, um dos erros da narrativa para mim é contar a história do Fred Hampton em comparação com a do Bill O’Neal, eles poderiam ter construído de outra forma para inserir o personagem do O’Neal sem que ficasse essa rivalidade entre dois homens pretos. Até mesmo essa dicotomia de ideias entre eles acabou sendo pouco desenvolvida”, completa.

O perigo da história única

Quanto a representação negra, ela acredita que precisamos conhecer outras. “Essa é só uma parte da história, ela não é a única, com essa ideia é possível associar à intelectual Chimamanda Ngozi e o problema da história única. É importante, ter um caráter de denúncia, as pessoas precisam saber do passado, da escravidão, de todas as problemáticas que ainda enfrentamos hoje por conta daquela época, mas essa não pode ser a única história contada”.

Chimamanda Ngozi falou sobre “O perigo de uma história única” em um TED Talk que ganhou tanta atenção que se tornou um livro. Ela discorre sobre como as narrativas unilaterais se tornam fonte dos estereótipos, que são repetidas constantemente e isso é bastante comum quando paramos para pensar no cinema, por exemplo.

“Mesmo que o fator histórico seja importante, ele não precisa sempre vir primeiro, acho que esse raciocínio é muito falho. Quando vemos a cultura de massa, é sempre a reprodução daquilo que já foi feito com moldes diferentes. A gente precisa sair disso, radicalizar as coisas, as conversas, os debates, seja em qualquer tema que formos abordar. Passou da hora da gente abordar histórias negras com outras perspectivas. Não tem uma história única para ser contada”, analisa Mariana Canuto.

“Eu acho que existe uma oscilação nesse sentido. ‘Pantera Negra’ é um dos poucos filmes que foge disso, não temos outras referências de produções com esse nível de empoderamento preto. Precisamos de outros roteiros, longa, histórias, para que possamos sair desse lugar de humilhação, do negro sempre diminuído socialmente”, completa.

‘Os 7 de Chicago’ e os Panteras Negras

Enquanto ‘Judas e o Messias Negro’ é com o foco total nos Panteras Negras, ‘Os 7 de Chicago’ gira em torno de um grupo de manifestantes planejando um protesto contra a Guerra do Vietnã durante a Convenção Nacional Democrata de 1968, em Chicago. O que era para ser um ato pacífico acabou se tornando violento e, devido a isso, líderes do movimento foram detidos.

O filme mostra o julgamento dos sete acusados – Abbie Hoffman (Sacha Baron Cohen), Jerry Rubin (Jeremy Strong), David Dellinger (John Carroll Lynch), Tom Hayden (Eddie Redmayne) , Rennie Davis (Alex Sharp), John Froines (Danny Flaherty) e Lee Weiner (Noah Robbins) – que na verdade, foram oito, já que Bobby Seale (Yahya Abdul-Mateen II) foi injustamente colocado como réu. Além de ser o único negro, Seale o único que estava preso, por ter sido acusado de matar um policial, e era conduzido sempre algemado ao tribunal.

Yahya Abdul-Mateen II como Bobby Seale em ‘Os 7 de Chicago’ (Foto: Divulgação/Netflix)

E é Seale que se conecta com ‘Judas e o Messias Negro’: ele era um dos líderes dos Panteras Negras na época dos protestos e do julgamento. No longa, dirigido e roteirizado por Aaron Sorkin, o ponto não é bem o que aconteceu com ele – que sem dúvida daria um outro filme – mas sim o destino dos outros réus.

Entretanto, uma das cenas mais fortes da produção é protagonizada por Yahya Abdul-Mateen II. Sem a presença do seu advogado, ele pede para que adiem seu julgamento ou para se representar diversas vezes. E, quem o orienta nesses momentos, é Fred Hampton (Kelvin Harrison Jr.).

Esses pedidos foram negados pelo juiz e a única solução para que parasse de falar foi pedir para levarem Seale uma sala para que fosse atado à uma cadeira com correntes e amordaçado, dessa forma não poderia mais “interromper”.

O que realmente aconteceu com Bobby Seale

É chocante ver isso no filme, mas há uma suavizada do que realmente aconteceu. Em ‘Os 7 de Chicago’ dá a entender que Bobby Seale ficou no máximo algumas horas amordaçado até que o juiz decidisse suspender o julgamento dele.

Na vida real, o líder dos Panteras Negras ficou dias nesta situação até que seu destino foi decidido. Como se não fosse o bastante, ele ainda teve que continuar entre os réus amarrado enquanto se comunicava apenas com sons e gestos como a cabeça.

Seagle, que inclusive está vivo, narrou o que aconteceu no livro ‘Seize The Time: A História do Partido dos Panteras Negras e Huey P. Newton’, lançado em 1970. E não há citação de que Fred Hampton tenha se envolvido no julgamento para ajudar Seale, como é mostrado no longa.

Voltando ao Oscar: ‘Os 7 de Chicago’ está indicado em 5 categorias, incluindo melhor filme. Marina Canuto pontua que, talvez, essa inserção da trama étnica talvez conte até como um dos motivos para o filme estar presente na premiação, já que ajuda a impactar o espectador.

A falta de representação feminina

Um fato notório entre os filmes citados é que, além do protagonismo negro, são sempre homens em foco. Dentro dos Panteras Negras, eles falam sobre não existir distinção de gênero e temos atividades femininas conhecidíssimas, como no caso de Angela Davis.

Quando teremos uma produção – que não seja apenas um documentário – sobre Davis? Kathleen Neal Cleaver, Assata Shakur, Elaine Brown e outras tantas mulheres que fizeram e fazem a diferença na luta negra também merecem ter suas histórias contadas.

“Poxa, não tem um filme [de ficcção] da Angela Davis, essa mulher é uma das pessoas mais revolucionárias do mundo e não tem uma cinebiografia sobre ela? Então, quando a gente pensa em direitos civis, nas comunidades afro-americanas, a primeira referência é a Angela Davis, você sendo homem ou mulher. Falando de feminino, estamos muito longe de ter essa representatividade como mulheres de força e inteligentes”, pontua Mariana Canuto.

Falta espaço para representatividade negra – principalmente quando falamos de mulheres (Foto: Divulgação / Warner Bros.)

‘Judas e o Messias Negro’ ainda dá um espaço para Deborah Johnson (no filme interpretada por Dominique Fishback) – também conhecida como Akua Njeri – a noiva de Fred Hampton. No entanto, não temos muitos detalhes sobre ela fora o relacionamento com o líder dos Panteras Negra.

“Novamente vou dizer que precisamos radicalizar os debates, não só na Academia, na ciência, mas também na cultura, na história. Cinema é cultura e nesse sentido, precisamos dessa abordagem. O que quero dizer com radicalizar? Pautar causas sociais que deem espaço às mulheres e longe de uma representação subalternada”, afirma a professora.

“Quando pensamos em Oscar, em Hollywood, não tem como não associar a homens brancos cheios de dinheiro. É muito difícil sair disso e radicalizar os debates por conta dessa estrutura de poder e dinheiro, que não nos permite fazer isso. Falam que precisamos ser moderados e equilibrar os discursos, mas na verdade não, se for assim, vamos continuar reproduzindo as mesmas coisas que queremos mudar com uma moldura mais moderna, falando de cinema.”

“Precisamos radicalizar
os debates”

“Estamos sempre lutando contra um sistema completamente poderoso, que dita como devemos pensar e agir. As produções de Hollywood acabam jogando sempre com as mesmas cartas, esse controle de fiscalização”, finaliza a pesquisadora de questões étnico-raciais.

Vale ressaltar que além de ‘Judas e o Messias Negro’ e ‘Os 7 de Chicago’, outras produções com temáticas negras estão entre os selecionados ao Oscar 2021. ‘A Voz Suprema do Blues’ acompanha a gravação de um disco de Ma Rainey, uma das primeiras cantoras afro-americanas profissionais de blues. Com Viola Davis, que finalmente foi indicada como melhor atriz, e Chadwick Boseman, presente entre os listados como melhor ator.

Mais um longa que fala de artistas negras é ‘United States vs. Billie Holiday’, que conta a poderosa história da cantora de jazz Billie Holiday. Andra Day, que dá vida à Holiday, ganhou o Globo de Ouro de melhor atriz e foi nomeada ao Oscar também por sua atuação. E também o novo filme de Spike Lee, ‘Destacamento Blood’, que foi destaque apenas em melhor trilha sonora.

Em melhor documentário tem ‘Time’, que conta a história de uma mulher tentando libertar seu marido da Penitenciária Estadual de Louisiana, conhecida como Angola.

‘Dois Estranhos’, que concorre a melhor curta-metragem, é um dos filmes mais fortes do ano por retratar a violência polícia contra os negros nos Estados Unidos. É praticamente uma denúncia sobre essa brutalidade que acontece também em diversos outros países.

Outra curta é ‘Uma Canção para Latasha’, que faz uma homenagem a uma adolescente que foi assassinada por comprar um suco de laranja e a acusaram de roubo. Latasha Harlins tinha apenas 15 anos quando isso aconteceu e uma onda de protestos tomou conta de Los Angeles após isso.

O Oscar 2021 acontece no dia 25 de abril, um domingo, a partir das 21h (horário de Brasília) – com transmissão no canal pago TNT, na Rede Globo e no Globoplay, além de comentários no Twitter do Filmelier. Clique aqui para conferir os indicados.‘Os 7 de Chicago’ está disponível na Netflix, enquanto ‘Judas e o Messias Negro’ já passou pelos cinemas e aguarda o seu lançamento no VOD.

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