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Crítica: ‘Não Abra!’ e o medo de não pertencer

Um dos aspectos mais marcantes dos monstros – e do terror como gênero narrativo em geral – é sua elasticidade para expressar de maneira concreta praticamente qualquer medo, não importando quão abstrato. Não Abra!, que chega esta semana às plataformas de streaming, abraça essa qualidade para narrar uma experiência ao mesmo tempo específica e universal: a dos migrantes.

Utilizando elementos típicos do terror sobrenatural – uma ameaça misteriosa e incompreensível, intriga, uma atmosfera angustiante e violência –, o filme do diretor Bishal Dutta incorpora elementos do folclore indiano e os adapta a essas convenções.

O resultado não é tão impactante visualmente como os filmes mais convencionais do gênero, mas nos mergulha em um contexto psicologicamente denso que poderia ser comparado, por exemplo, a propostas como Fale Comigo, também deste ano.

Não Abra!: entre exotismo e identidades duplas

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A trama de Não Abra! segue Samidha, ou Sam (Megan Suri), uma estudante do ensino médio de pais conservadores indianos, mas que vive em um subúrbio californiano. Desde o início, o filme expressa as duas forças em tensão ao seu redor: sua mãe jovem e abnegada (Neeru Bajwa) veste-se de maneira tradicional e fala com ela em hindi sobre os rituais familiares que ela deve seguir. Ela, por outro lado, responde sempre em inglês, o idioma com o qual se comunica com seus novos amigos. Ela se sente desconfortável quando lhe pedem para falar em hindi, ou quando Tamira (Mohana Krishnan), sua amiga de infância, aparece, comportando-se de maneira errática. Com uma aparência cansada e nervosa, a garota carrega consigo um frasco misterioso vazio para todos os lugares. Irritada pela percepção que Tamira traz aos outros, Sam quebra o frasco. Com isso, uma força é liberada, inicialmente incompreensível, mas que muda as vidas de ambas quando Tamira desaparece e Sam, por sua vez, passa a vivenciar fenômenos violentos e inexplicáveis. Leia também: Crítica: ‘Rebel Moon (Parte Um)’ e as vaginas espaciais de Zack Snyder
No início, a presença de Tamira representa tudo o que Sam não quer ser (Crédito: Imagem Films)
Superficialmente, Não Abra! parece um filme típico de terror sobrenatural: personagens ameaçados por uma força misteriosa que precisa ser revelada e enfrentada antes que seja tarde demais para os outros. No entanto, é no drama particular de seus personagens – e na natureza folclórica de seu monstro – que o filme encontra seu cerne. O diretor também pode estar nos contando uma história como tantas outras sobre adolescentes que apenas desejam se encaixar em um grupo de amigos. Não Abra! enfatiza a tensão entre a etnia de sua protagonista e seu desejo de pertencimento. Ele nos sugere, inclusive, que ela não pertence realmente a nenhum lugar. Ela existe em uma espécie de limbo desconfortável, entre as expectativas tradicionais de seus pais, imigrantes indianos, e as do seu ambiente como uma adolescente indo-americana. Esse traço de identidade se estende até mesmo à ameaça central, um demônio do hinduísmo conhecido como pishacha. O diretor (e também roteirista) consegue traduzir alguns de seus elementos característicos para o terreno do terror convencional.
Não Abra! marca uma tensão constante entre identidades de dois mundos diferentes (Crédito: Imagem Films)
Com isso, ele ancora sua narrativa sobre essa busca de identidade e pertencimento, embora lamente que o tratamento do monstro em si caia nos clichês: sustos, aparições e desaparecimentos, uma aparência ambígua sob a proteção das sombras. Como resultado, o filme é mais poderoso como metáfora do que como entretenimento assustador. No entanto, apesar disso, Dutta consegue capturar a angústia daqueles que existem entre duas identidades. Um medo da solidão que, talvez, sempre viverá neles, mas que é possível superar para encontrar a paz.

Não Abra! está prestes a chegar às plataformas de streaming. Acompanhe aqui.

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Lalo Ortega

Lalo Ortega é crítico e jornalista de cinema, mestre em Arte Cinematográfica pelo Centro de Cultura Casa Lamm e vencedor do 10º Concurso de Crítica Cinematográfica Alfonso Reyes 'Fósforo' no FICUNAM 2020. Já colaborou com publicações como Empire en español, Revista Encuadres, Festival Internacional de Cinema de Los Cabos, CLAPPER, Sector Cine e Paréntesis.com, entre outros. Hoje, é editor chefe do Filmelier.

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Lalo Ortega

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