‘Nomadland’ e a escravidão do dinheiro em tempos modernos ‘Nomadland’ e a escravidão do dinheiro em tempos modernos

‘Nomadland’ e a escravidão do dinheiro em tempos modernos

Em ‘Nomadland’, filme favorito ao Oscar 2021, Frances McDormand interpreta uma mulher de meia-idade que, após a crise de 2008, precisa morar em uma van nos Estados Unidos

Matheus Mans   |  
23 de abril de 2021 09:58
- Atualizado em 24 de abril de 2021 18:25

Ao pensarmos no Oeste dos Estados Unidos, há um mundo de fantasias que ronda o imaginário desse lugar repleto de desertos, sol e poeira. Afinal, John Wayne e Clint Eastwood concretizaram a imagem do homem que fez de tudo para ganhar um punhado de dólares na região, enquanto outros faroestes insistiram em ressaltar a corrida do ouro ao longo dos séculos.

Isso sem falar dos estigmas mais modernos, criados em filmes como ‘As Patricinhas de Beverly Hills’, ‘Se Beber, Não Case!’ e ‘Onze Homens e um Segredo’, que reforçam a ideia de que Los Angeles e Las Vegas são mecas do dinheiro. Por isso, e muito mais, que é tão forte o que a cineasta Chloé Zhao (‘Domando o Destino’) fez ao retratar essa região em ‘Nomadland’ – filme que está em cartaz em algumas salas neste fim de semana e estreia oficialmente nos cinemas na próxima quinta, 28.

Chloé Zhao durante gravação de ‘Nomadland’, longa-metragem indicado ao Oscar 2021 (Crédito: Divulgação/20th Century Studios)

O longa-metragem, que é um dos favoritos na corrida ao Oscar de 2021, também coloca uma trama sobre dinheiro no Oeste americano. Mas, ao contrário de todos esses outros filmes que citamos, não há abundância de dólares. Há falta. Fern, a protagonista dessa história brilhantemente vivida por Frances McDormand, é um flagelo da crise americana de 2008.

Crise e ‘Nomadland’

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Não há necessidade de ficar estendendo no que foi a crise — existem também filmes sobre isso, como ‘A Grande Aposta’ e pouco falado ‘99 Casas’. O fato é que a quebradeira de bancos não gerou apenas números desastrosos e caos na economia, esse monstro sem rosto. Também gerou desemprego e desilusões. Fern vive essa vida enquanto mora em uma van no oeste.

“O que a crise de 2008 causou na sociedade americana foi uma fissura que dificilmente vai ser curada. Afinal, mesmo uma década depois, é possível encontrar americanos que vivem em condições mínimas. A crise escancarou a invisibilidade do capitalismo”, comenta a economista Lívia Rochedo, em entrevista ao Filmelier. “‘Nomadland’ é sobre isso”.

Zhao, que já explorou a paisagem do Oeste outras vezes em sua curta e interessante filmografia, agora vai além. Coloca Fern em contraste com as montanhas dessa região dos Estados Unidos e mostra a miséria que existe hoje, décadas e séculos depois da corrida do ouro. O capitalismo gerou dinheiro e especulação sem fim, mas ainda há quem viva sem um tostão.

Fern, mais especificamente, passeia entre empregos temporários tentando arranjar o seu para se alimentar e viver com dignidade. Encontra-se com outras pessoas que vivem na mesma situação, alocadas em vans, enquanto trocam objetos para sobreviver na estrada — é o taser elétrico, é a privada, é a cadeira. Tudo isso em tempos de obsolescência.

Zhao, mesmo não tendo nascido nos EUA, captura a essência de um povo que não aparece nas câmeras tradicionais de grandes cineastas de lá. Ela entende a dor dessas pessoas. Não é à toa que coloca não-atores na tela, em um flerte entre documentário e ficção. Por mais que McDormand esteja bem, são os nômades do deserto que conhecem as suas histórias.

“[Esses nômades] são membros de uma contra-cultura nascida da necessidade: a América é uma terra de abundância, mas não o suficiente”, diz John DeVore, jornalista americano, em um texto brilhante no Medium. “Esses errantes são pessoas que sobrevivem de boas atitudes, ensinando generosamente aos novatos como sobreviver nesses ‘vagões de trem’”.

A beleza na ausência

Apesar de toda essa história de crise, solidão e falta de perspectivas ao redor de ‘Nomadland’, Zhao coloca certa poesia na liberdade de Fern. Afinal, ela vive sem grandes compromissos além de sobreviver — o que, convenhamos, já é muita coisa. Além disso, no meio dessa comunidade de nômades, ela encontra pessoas realmente profundas e generosas.

Em ‘Nomadland’, McDormand contrasta com as paisagens do Oeste norte-americano (Crédito: Divulgação/20th Century Studios)

“Acredito que a diretora quase escapa do limite do aceitável quando começa a romantizar algumas liberdades da personagem. Em alguns momentos, dá vontade de viver aquilo que ela vive. Chloé Zhao quase entra na roda do capitalismo”, continua Lívia Rochedo ao Filmelier. “Mas acho que é algo mais profundo do que isso, graças à McDormand”.

A atriz mostra que por mais liberdade que tenha, e até mesmo a possibilidade de criar novas raízes, a solidão continua. O personagem de David Strathairn provoca justamente isso na trama, permitindo que Fern escape daquela realidade. Os motivos para isso não são esclarecidos por Zhao na história, mas há algo que podemos tirar do texto de John DeVore.

Ele conta, em determinada passagem, que também perdeu o emprego na crise de 2008 e que o mais difícil para ele foi admitir o fracasso. “Os americanos são obcecados por dinheiro, mas raramente falam sobre ele. O terapeuta que comanda meu grupo menciona que é mais fácil para alguns falar sobre sua vida amorosa do que sobre sua conta bancária”, diz.

Talvez Zhao, no seu íntimo, tenha sentido essa necessidade de mostrar que há outros nessa situação mesmo treze anos depois. Que outras pessoas também não admitem o fracasso. E, ao final do filme, ainda podemos nos questionar: “ok, a Fern está falida, mas será que ela é realmente um fracasso?”. ‘Nomadland’ é um filme duro, sobre uma população invisibilizada pelo dólar, mas que mostra também a beleza na ausência.

Além de ‘Nomadland’

Apesar da força da história Zhao, e desses contrastes todos que já citamos, vale ressaltar que esse movimento de trazer cada vez mais os “invisíveis” para a tela vai muito além de um desejo da cineasta chinesa e, acima de tudo, do cinema americano. O próprio ‘Parasita’, que arrebatou o Oscar de 2020, é sobre essas pessoas esquecidas pelo sistema, vivendo à margem.

‘Parasita’ também fala sobre a invisibilidade de pessoas em sistemas sociais e econômicos (Crédito: Divulgação/Califórnia Filmes)

O mesmo acontece em filmes como ‘Ya No Estoy Aquí’, ‘Bacurau’ e ‘Os Miseráveis’. No cinema francês, um drama que também mistura realidade e ficção também vai direto ao ponto: ‘As Invisíveis’, de Louis-Julien Petit. Todas elas são produções que, independente de quem é retratado, mostra o lado cruel do capitalismo e como as pessoas são esquecidas no sistema.

“É claro que o cinema sempre falou sobre desajustados, por exemplo. Mas sinto que há um movimento de falar cada vez mais sobre quem antes era esquecido até nessas histórias”, diz a economista, também citando filmes de Ken Loach, como ‘Eu, Daniel Blake’ e ‘Você Não Estava Aqui’. “Quem sabe o cinema, com ‘Nomadland’ como exemplo, seja início de algo maior”.

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