‘O Beco do Pesadelo’: Guillermo del Toro e a paixão pelo lado decrépito da figura humana ‘O Beco do Pesadelo’: Guillermo del Toro e a paixão pelo lado decrépito da figura humana

‘O Beco do Pesadelo’: Guillermo del Toro e a paixão pelo lado decrépito da figura humana

O filme, que acaba de estrear nos cinemas brasileiros, retrata o olhar triste – porém apaixonado – do renomado cineasta mexicano

27 de janeiro de 2022 10:23
- Atualizado em 28 de janeiro de 2022 12:03

“O mundo é um lugar cruel. E você vai aprender isso, mesmo que doa”. O aviso de Carmen (Ariadna Gil) para Ofelia (Ivana Baquero) é um dos (vários) trechos marcantes de ‘O Labirinto do Fauno‘, filme lançado em 2006 e vencedor de três Oscars. Porém, mais do que um significado para a história, o diálogo pode transcender para além do longa-metragem. Afinal, ele define de diversas formas o trabalho de seu realizador, o cineasta Guillermo del Toro.

‘O Beco do Pesadelo’, o novo filme do mexicano e que estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta (27), eleva o conselho para a enésima potência, só que com um twist: deixa claro também como funciona o encanto pela melancolia, pela perdição e pelas falhas humanas deste que é, sem dúvida alguma, um dos grandes nomes do cinema atual.

É difícil entender del Toro se você não analisar com cuidado as características desse fascinante diretor. O mexicano é um apaixonado pela arte cinematográfica, principalmente pela Era de Ouro de Hollywood, transparecendo esse fascínio em tudo que faz. Ao mesmo tempo, ele é encantado pelo lado mais decrépito da figura humana. Mesmo os monstros em sua obra são representações e aglutinações dessas falhas (como o Homem Pálido, do mesmo ‘O Labirinto do Fauno’), ou seres que possuem uma pureza intocada que é corrompida pelo mundo urbano (o caso do Homem-Anfíbio de ‘A Forma da Água‘).

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Porém, em ‘O Beco do Pesadelo’ é o homem quem é o bicho do homem: não há monstros, com a figura humana sendo obrigada a encarar o seu próprio caminho em direção à monstruosidade.

O Beco do Pesadelo: Bradley Cooper é Stanton Carlisle, que encontra uma nova motivação para a vida em um circo no interior dos EUA (crédito: divulgação / 20th Century Studios)
Bradley Cooper é Stanton Carlisle, um homem que encontra uma nova motivação para a vida em um circo no interior dos EUA (crédito: divulgação / 20th Century Studios)

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A personalidade do cineasta, mais uma vez, explica o porquê da escolha por esta história. “Toda vez que escolho fazer um filme, eu sempre digo que o pior monstro é o humano”, definiu o próprio del Toro em recente entrevista ao jornal britânico The Guardian. “Eu decidi continuar isso [em ‘O Beco do Pesadelo’], mas sem a rede de segurança do capricho ou dos voos de fantasia.”

Entrando em ‘O Beco do Pesadelo’

O longa-metragem é uma nova adaptação do livro ‘Nightmare Alley’ de William Linsay, que deu origem, em 1947, ao filme que é conhecido no Brasil como ‘O Beco das Almas Perdidas’, estrelado por Tyrone Power e Joan Blondell.

A versão original é um grande exemplar dos filmes noir da época, com seus roteiros cínicos, fotografia soturna e ar de crime e mistério. Tudo isso temperado com o chamado Código Hays, que colocava em Hollywood uma certa moralidade cristã e proibia insinuações mais sexuais ou violência intensa. Era então um jogo de revelar sem mostrar tudo, com o subliminar se dissipando na névoa da noite fria.

No novo ‘O Beco do Pesadelo’ somos apresentados a Stanton Carlisle (Bradley Cooper), um homem com uma sombra em seu passado, mas também com os olhos brilhantes pela ambição. Charmoso e atraente, ele consegue alguns bicos em um circo do Meio-Oeste dos EUA. Lá, o grande animal em exibição é o homem, enquanto a vítima é a ingenuidade dos visitantes. Uma combinação que muda a vida de Carlisle para sempre.

O personagem de Willem Dafoe e O Beco do Pesadelo representa o lado mais sinistro da exploração humana (crédito: divulgação / 20th Century Studios)
O personagem de Willem Dafoe em ‘O Beco do Pesadelo’ representa o lado mais sinistro da exploração humana (crédito: divulgação / 20th Century Studios)

Com a arte da manipulação que aprende com o “empreendedor” Clem (Willem Dafoe), com a cartomante e vidente Zeena (Toni Collette) e, principalmente, com o gênio de Pete (David Strathairn), Carlisle se transforma em algo maior. Passa, assim como Pete, a dominar a comunicação cifrada e a técnica da “leitura a frio” – que permite, a partir da empatia e da leitura do comportamento das pessoas, adivinhar fatos da vida da vítima.

O circo, retratado como o lado mais decrépito da exploração humana, fica então para trás. O protagonista parte ao lado da nova amada, Molly (Rooney Mara), e ‘O Beco do Pesadelo’ entra em seu segundo ato. Carlisle cresce e, em dois anos, se torna um famoso vidente chamado “O Grande Stanton” – mas também um homem cheio de soberba e ganancia.

“A ascensão e queda
de um mentiroso”

É quando ele cruza o caminho com Lilith Ritter (Cate Blanchett), a terapeuta dos ricos e poderosos na metrópole – lugar que, apesar da arquitetura impecável e asfixiante de tão imponente, também esconde seu lado soturno. Juntos, eles embarcam em um perigoso jogo de mentiras, se envolvendo com o sinistro Ezra Gindle (Richard Jenkins), um homem com seus próprios esqueletos no armário.

“É a ascensão e queda de um mentiroso”, afirmou del Toro na mesma entrevista. Melhor definição para o enredo do que essa, vinda da boca do próprio realizador, não há.

O consultório (ou escritório) de Lilith é um dos cenários importantes de O Beco do Pesadelo (crédito: divulgação / 20th Century Studios)
O consultório (ou escritório) de Lilith é um dos cenários importantes de ‘O Beco do Pesadelo’ (crédito: divulgação / 20th Century Studios)

Nesse contexto, a atuação de Cooper se sobressai. Aos poucos, a transformação do protagonista dentro da história vai ficando clara na atuação. É algo gradativo e, quando nos damos conta, tudo mudou – isso mais de uma vez. Quando Blanchett entra em cena, então, é a união perfeita.

É como se saíssem faíscas da tela, dentro desse jogo de gato e rato criado entre os dois.

Os becos figurados e reais

Para contar essa história na forma de imagens, a direção de arte – característica marcante das obras do mexicano – está impecável. Em certos momentos, revela a decadência humana de forma brutal. Em outros, transforma o luxo e a beleza do art déco já em declínio em um retrato mais subliminar desse relato. Tudo bebendo, sempre, da grande influência do cinema noir.

“O escritório de Lilith é um beco. Muitas coisas são becos nesse filme”, explicou o produtor J. Miles Dale em entrevista a The Wrap. “E no escritório, tudo está escondido. O cofre dela é atrás de uma porta o equipamento de gravação está atrás de um porta.”

“Tudo em ‘O Peco do Pesadelo’ foi sobre fazer becos de espaços, andando através desses becos”, completou Tamara Deverell, diretora de arte do longa, em entrevista para o /Film.

Como vemos, mais do que contar uma história sobre as ruelas da vida, o longa quer nos colocar nelas, deixando a mesma sensação vivenciada por seus personagens: de que não há saída.

Ao cruzar esse caminho estreito, o filme passa por temas como morte, arrogância, culpa, aborto, corrupção, vício, decadência, manipulação e degradação humana. Tudo com um olhar triste, porém apaixonado pelos mais baixos atos humanos.

'O Beco do Pesadelo' não é só literal: o filme tem diversos becos metafóricos construídos em seus cenários (crédito: divulgação / 20th Century Studios)
‘O Beco do Pesadelo’ não é só literal: o filme tem diversos becos metafóricos construídos em seus cenários (crédito: divulgação / 20th Century Studios)

“Nossa capacidade de sermos brutais uns com os outros é infinita, injustificada e gratuita. E parece vir naturalmente”, definiu o diretor ainda na entrevista a The Guardian. “Acho que somos seres paradoxais: somos o melhor que aconteceu a este planeta e o pior. Não há razão para negar um lado. Somos capazes de atos amorosos absolutamente lindos e absolutamente brutais. Nós não existimos em um único espaço.”

Não por menos, Cooper contou em uma recente edição do podcast The Business que del Toro pediu ao ator que praticasse boxe na preparação para o papel. Não que ele lute em algum momento do longa, ou que o seu corpo precisasse de (mais) algum treinamento. Ainda que não explicitado pelo astro, o motivo é claro: era preciso aprender a revidar os socos que a vida dá.

O último golpe, no entanto, é o pior de todos.

Se ‘A Forma da Água’ nos entrega um final que, se não é exatamente perfeito, tem uma beleza e uma felicidade excêntricas, ‘O Beco do Pesadelo’ não faz nada disso. Pelo contrário: nos coloca na jaula comum da história, revelando que nenhum de nós é melhor do que os piores – e que, talvez, a única coisa que nos separe dos mais vis é ter (algum) escrúpulo.

A fala final do ex-Grande Stanton de Bradley Cooper, exatamente igual a da versão original por Tyrone Power, exemplifica tudo isso. Mas, aqui, guardarei a frase, até porque ela só realmente tem grande impacto após as 2h30 de projeção.

Assista e descubra.

‘O Beco do Pesadelo’ está em cartaz nos cinemas. Clique aqui para conferir mais informações sobre o filme, incluindo o trailer e o link para a compra de ingressos.

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