‘O Homem do Norte’: As correntes do legado e do destino ‘O Homem do Norte’: As correntes do legado e do destino

‘O Homem do Norte’: As correntes do legado e do destino

‘O Homem do Norte’ é o terceiro longa-metragem do cineasta Robert Eggers, que fez a sua estreia com ‘A Bruxa’

Lalo Ortega   |  
12 de maio de 2022 18:08
- Atualizado em 13 de maio de 2022 14:29

Existem várias razões pelas quais ‘O Homem do Norte’, que estreia nos cinemas brasileiros hoje, dia 12, possa parecer uma anomalia na filmografia ainda nascente do cineasta americano Robert Eggers. Por um lado, é um desvio do que é tradicionalmente considerado terror, gênero dos seus dois primeiros filmes, ‘A Bruxa’ (2015) e ‘O Farol’ (2019), ambos ambientados nos – e baseados em histórias dos – Estados Unidos.

Por outro lado, é sua primeira megaprodução: um fantástico épico viking, produzido pelo estúdio Regency Enterprises, com um orçamento de cerca de US$ 90 milhões (para comparação, ‘A Bruxa’ custou cerca de US$ 4 milhões, enquanto ‘O Farol’ custou cerca de US$ 11 milhões).

O investimento é notável na diversidade de locais, na complexidade das coreografias e no trabalho de câmera, bem como no calibre dos efeitos visuais e nomes no pôster. Mas os elementos essenciais de seus dois longas-metragens anteriores não desapareceram e definiram o que já é um estilo identificável.

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Pelo contrário, ‘O Homem do Norte’ mantém a meticulosidade de Eggers para construir montagens de época extremamente precisas. Com histórias baseadas no folclore e no mito, nas quais desaparecem as fronteiras da mente que separam a razão da alucinação e a realidade da fantasia.

Alexander Skarsgård e Anya Taylor-Joy estrelam ‘O Homem do Norte’ (Crédito: Universal Pictures)

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Inicialmente, talvez a única coisa realmente diferente seja a decisão do diretor de aparentemente abandonar o gênero de terror psicológico. No entanto, poderíamos argumentar que não é bem assim, pois o protagonista de seu terceiro filme enfrenta uma forma muito mais sutil de terror: um legado geracional que impõe um destino a ser cumprido, independentemente do custo ou dos horrores disso.

Sangue e Fúria

Na virada do século X conhecemos o protagonista, Amleth (Oscar Novak), como um menino aguardando o retorno de seu pai, um rei viking conhecido como Aurvandill (Ethan Hawke). O jovem príncipe o idealiza e quer ser como ele. Por sua vez, seu pai acredita que é hora do menino crescer para ser considerado um homem.

Após ser ferido em batalha, o rei sente que seu filho deve ser capaz de assumir o comando, caso ele morra. Isso, na mitologia nórdica, era considerado a única maneira de morrer com honra e alcançar a glória de Valhalla, o “salão dos caídos” governado pelo deus Odin, o “pai de todos”.

Assim, pai e filho passam juntos por um ritual mágico, no qual o “filhote” imita a ferocidade animalesca de seu pai, que faz personificação de um lobo. É aqui que Eggers nos lança diretamente em suas habituais visões sobrenaturais: no vazio, Amleth confronta a “árvore dos reis”, uma manifestação da nobre linhagem de seus ancestrais.

Agora ele traz consigo um juramento: se o seu pai for morto, será condenado a viver sem honra até vingar a sua morte. E, a seu tempo, deve suportar o fardo da sua própria linhagem.

No entanto, a realidade brutal irrompe na sua vida pouco depois, com uma flecha que perfura o ar e a carne do seu pai. Amleth é forçado a esconder-se e assistir enquanto o seu tio, Fjölnir (Claes Bang) leva a vida do rei para tomar o controlo do reino e a sua esposa, Gudrún (Nicole Kidman).

Claes Bang (‘The Square’) é Fjölnir, cuja vida Amleth jura colecionar (Crédito: Universal Pictures)

Amleth escapa da morte, mas é forçado a fugir para longe, carregando apenas seu juramento enraizado em seu peito. Anos depois (agora na pele de Alexander Skarsgård), ele se tornou um guerreiro brutal, mas perdeu o rumo: invade aldeias, assassina impiedosamente e escraviza os sobreviventes.

É um encontro casual que o coloca de novo no seu caminho original, no que é essencialmente uma reinvenção viking de Hamlet – o nome do protagonista vem de uma lenda escandinava medieval que inspirou Shakespeare. Em suma, ‘O Homem do Norte’ é uma fantasia épica de vingança: Amleth deve encontrar Fjölnir, não importa que custe seu corpo ou sua alma. Só então ele poderá recuperar sua honra e se tornar digno de entrar em Valhalla.

Nesse sentido, o roteiro escrito a quatro mãos por Eggers e pelo romancista islandês Sjón (que também co-escreveu ‘Lamb’) é bastante simples, e não dá espaço suficiente para tornar o protagonista mais complexo. Seu eventual choque com uma verdade inescapável – a futilidade da vingança – pode ser previsto a partir do momento em que seu caminho se cruza com o de Olga (Anya Taylor-Joy).

Mesmo as cenas de fantasia delirantes de Eggers funcionam em uma direção contrária pensando em ‘A Bruxa’ e ‘O Farol’. Neste último, a representação visual do horror se infiltra na realidade como alucinações, produto da solidão, fome ou medo da sedução do desconhecido e da retribuição divina. Em ‘O Homem do Norte’, eles representam uma certeza devastadora: a vontade inabalável dos deuses, impondo uma pesada herança inescapável e um futuro inevitável de ódio, raiva e sangue.

Nicole Kidman tem o papel mais interessante em ‘O Homem do Norte’ (Crédito: Universal Pictures)

Assim, o horror de ‘O Homem do Norte’ não está na descida à loucura, mas na condenação de viver em um banho de sangue, cuja única alternativa é a desgraça. Uma convicção de tal firmeza que, ao colidir frontalmente com uma verdade trágica, não lhe resta outra opção senão quebrar, para que os pedaços do homem fragilizado subsistam na prisão de sua própria criação.

‘O Homem do Norte’: O destino entrelaçado de Amleth e Eggers

Embora este seja um filme muito mais ambicioso do que os dois primeiros, Eggers traz a sua meticulosidade àuma megaprodução. Isto vai desde os elementos estilísticos familiares da sua filmografia (tais como os grandes planos frontais claustrofóbicos dos personagens), bem como a precisão da sua recriação do século X (o arqueólogo Neil Price e a acadêmica Johanna Katrin Fridriksdottir foram consultores na produção).

A escala das sequências de combate também não são obstáculos à sua precisão habitual (e à do fotógrafo Jarin Blaschke, com quem o realizador colabora desde o curta-metragem ‘The Tell-Tale Heart’, de 2008, baseado no conto de Edgar Allan Poe). ‘O Homem do Norte’ é, formal e tecnicamente, tão formidável quanto seus antecessores, a serviço de uma produção audiovisual maior, ainda que um pouco mais limitada no desenvolvimento da psique de seus personagens.

Com a sua terceira produção, contudo, o próprio Robert Eggers tem um curioso paralelo com Amleth: ele também está afligido pelo seu legado e pelo seu destino. Ele é um aspirante a autor que, após o seu estrondoso sucesso na cena independente, decidiu mergulhar em grandes produções de estúdio.

É uma trajetória que tem sido seguida por inúmeros cineastas antes dele (de Christopher Nolan, Gareth Edwards até Darren Aronofsky, para citar apenas alguns), pelo que se tornou algo como uma expectativa da indústria. E claro que faz sentido: o prestígio atrai o investimento necessário para consolidar mesmo a visão artística mais ambiciosa.

A parte complicada é impedir que essa visão autoral se perca nas exigências comerciais de um estúdio: aí reside a tensão entre o legado e o destino. Eggers, de um modo geral, foi bem sucedido com ‘O Homem do Norte’ . Durante praticamente todo o seu tempo de duração, é um filme que é inegavelmente seu.

Mas há algumas cenas que se afastam completamente do estilo e do tom tanto do realizador como do seu co-roteirista. Tanto Eggers como Sjón prosperam na ambiguidade metafórica, mas aqui há exemplos de diálogos excessivamente explicativos, pondo em palavras o que as próprias imagens sugerem. Há uma passagem tão descaradamente fraca que parece mais ‘Titanic’ do que um épico viking sobre um guerreiro obcecado pela vingança.

As sequências de combate são um grande passo em complexidade para o diretor Robert Eggers (Crédito: Universal Pictures)

Naturalmente, isso é um produto da interferência do estúdio, que realizou as exibições de teste de rotina e deve ter sentido que era necessário um cuidado ainda maior para ser um produtor popular. Eggers disse ao The New Yorker que houveram comentários como “você precisa de um mestrado em história viking para entender algo sobre este filme”.

Isto levou a filmagem de novas cenas (os famosos reshoots, bastante evidentes aqui) e à criação de múltiplos cortes de edição. A preocupação do estúdio em recuperar o seu investimento na bilheteira, para o melhor e para o pior, tem um impacto no produto final.

‘O Homem do Norte’ é, infelizmente, um caso que ilustra os danos que essa interferência na pós-produção pode trazer a uma obra de grandes ambições artísticas. A visão autoral de Eggers faz com que seu terceiro longa seja perfeito, mas são esses detalhes que o impedem de chegar a sua própria Valhalla. Embora, por outro lado, seja um pequeno milagre que este filme exista, em um cenário que condena ao fracasso quase qualquer grande produção que não venha de uma franquia estabelecida.

Talvez a produtora Regency encontre aqui uma lição: confiar no cineasta. Ou talvez, por outro lado, Eggers se encontre no mesmo dilema que Amleth e descubra que não é necessário cumprir esse grandioso destino. Talvez seja melhor regressar ao controle criativo proporcionado por aspirações mais modestas que fizeram de ‘A Bruxa’ e ‘O Farol’ as suas primeiras obras-primas.

Se a entrevista com The New Yorker for alguma indicação, o diretor pode ter aprendido a sua lição: “Francamente, acho que não o farei novamente. Mesmo que isso signifique não voltar a fazer um filme deste tamanho. Que, a propósito, gostaria de fazer um filme deste tamanho. Gostaria de fazer um ainda maior. Mas, sem controle [criativo], não sei. É muito difícil para mim”.

‘O Homem do Norte’ está em cartaz nos cinemas brasileiros. Se você quiser saber mais sobre o filme, ver o trailer ou comprar ingressos, clique aqui.

Texto publicado primeiro na edição mexicana do Filmelier News.

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