‘Ron Bugado’: do sonho do primeiro filme aos cinemas de todo o mundo ‘Ron Bugado’: do sonho do primeiro filme aos cinemas de todo o mundo

‘Ron Bugado’: do sonho do primeiro filme aos cinemas de todo o mundo

Em entrevista exclusiva, dois brasileiros que trabalharam na animação contam um pouco do processo de criação do filme de estreia da Locksmith Animation – que está em cartaz no Brasil

2 de novembro de 2021 13:12
- Atualizado em 3 de novembro de 2021 16:50

Quando você pensa em um filme de animação – seja curta ou longa-metragem – logo vem a mente nomes de estúdios como Pixar e Walt Disney Animation, ou talvez DreamWorks Animation (da franquia ‘Madagascar‘) ou da finada Blue Sky (‘A Era do Gelo’). Porém, uma novata resolveu entrar nessa história: a Locksmith Animation, que estreou recentemente nos cinemas de todo o mundo com ‘Ron Bugado’, longa animado distribuído pela 20th Century Studios (ex-Fox, hoje parte da Disney).

Vendo o bom resultado na tela grande, fica a pergunta: como é o processo de se criar algo do zero, principalmente com um pandemia atingindo o mundo na parte final do processo?

O Filmelier estrevistou dois artistas que trabalharam na produção, os brasileiros Carlos Lutterbach e Victor Sampaio, ambos envolvidos na criação dos storyboards da animação. Em um papo descontraído, eles compartilharam detalhes da contribuição deles em ‘Ron Bugado’, os desafios e muito mais.

Ron e Barney são os protagonistas de Ron Bugado, novo filme da 20th Century - hoje parte da Disney (Crédito: divulgação / 20th Century Studios)
Ron e Barney são os protagonistas de ‘Ron Bugado’, novo filme da 20th Century – hoje parte da Disney (Crédito: divulgação / 20th Century Studios)

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Afirmar que a Locksmith é uma novata nessa indústria não é um exagero: a empresa londrina foi criada em 2014 por um trio 100% feminino, Sarah Smith, Julie Lockhart (ambas ex-Aardman Animations, de franquias como ‘Shaun, o Carneiro’) e Elisabeth Murdoch (parte do clã Murdoch, da News Corp.). Pouco depois, a nova empresa fez um acordo com a DNEG, responsável por efeitos especiais de produções como ‘A Origem‘ e ‘Blade Runner 2049‘, auxiliando na limitação computadorizada.

Com tudo isso reunido, mãos à obra para o longa-metragem de estreia do estúdio, que viria a ser ‘Ron Bugado’.

“Cada produção é bastante diferente [de uma pra outra], porque a equipe é diferente, mesmo que tenham pessoas que se conhecem, acaba tendo uma amizade e tudo mais”, explica Carlos Lutterbach, que vive há alguns anos na capital do Reino Unido. “Talvez o que tenha sido interessante na Locksmith é porque era, foi um momento especial. Porque é um estúdio diferente aqui em Londres, porque eles têm não só a capacidade de fazer a pré-produção do filme – que seria o storyboard, seria o desenvolvimento visual, a primeira passagem do filme – mas com a conexão que eles tem com a DNEG eles têm a capacidade de levar o filme até o final, como seria se você estivesse fazendo um filme da Disney ou da Pixar.”

“Foi interessante ver um estúdio desse, dessa envergadura nascendo dentro de Londres. Talvez esse seja o ponto mais diferente, é a chegada das pessoas, é interessante, uma coisa nova. Todo mundo na indústria fica animado, ‘nossa, tem um lugar novo e bom’. É muito bom, com muito talento, muitas pessoas talentosas lá”, diz o artista com uma clara empolgação no tom de voz.

“Justamente por ser o primeiro projeto, é o bebê assim de todo mundo lá dentro. Desde os produtores… é a primeira vez dos diretores dirigindo, então já é um filme grande pra uma primeira vez”, completa Victor Sampaio.

Ajudando a criar ‘Ron Bugado’

Dentro desse processo, os dois artistas brasileiros tiveram a sua importância. Afinal, é por meio da equipe responsável pelos storyboards que o roteiro começa a ganhar a forma de imagens.

Victor Sampaio, no canto superior esquerdo, e Carlos Lutterbach, na parte inferior, conversam com o Filmelier sobre a produção de Ron Bugado (Crédito: Filmelier)
Victor Sampaio, no canto superior esquerdo, e Carlos Lutterbach, na parte inferior, conversam com o Filmelier sobre a produção de ‘Ron Bugado’ (Crédito: Filmelier)

“O nosso trabalho é fazer com que essas palavras sejam traduzidas em imagens que podem eventualmente se tornar o filme final. E esse é um processo que acontece em equipe”, explica Lutterbach. “A nossa função é fazer com que o produto final visual represente a visão do diretor pro filme. Então a gente vai tentando responder perguntas sobre qual é a melhor maneira de filmar, onde a câmera deve estar, qual o conteúdo emocional da cena, qual a melhor maneira de mostrar o conteúdo emocional da cena. 

“Durante esse processo de traduzir o roteiro em imagens você também acaba descobrindo mais a respeito dos personagens e faz parte do processo também fazer ajustes na história, porque à medida que você vai contando uma história visualmente é diferente dela escrita e aparecem oportunidades para evoluir o material”, afirma o artista.

O brasileiro explica que a equipe responsável por storyboards variou bastante durante os quatro anos de produção – mesmo que tenham trabalhado no mesmo time, Lutterbach e Sampaio não estiveram ao mesmo tempo no processo, por exemplo. “Quando eu estava trabalhando a gente tinha acho que seis pessoas, talvez”, relata Carlos. “Num filme de produção normal você vai entre duas pessoas, uma pessoa, até 12 pessoas dependendo da necessidade do momento.”

“Bom eu entrei num momento diferente”, relembra Victor Sampaio. “Eu lembro que quando eu entrei já tinha inclusive uma primeira versão do filme, e a ideia é que a gente vá trabalhando, a gente faz uma primeira versão do filme no storyboard, que é basicamente quando, de uma maneira simples de explicar, você está lendo um livro, um romance, e você imagina a situação, os personagens. E é isso que você tem que fazer. Várias vezes eu fecho os olhos, eu imagino como tudo aquilo vai acontecer e eu passo aquilo para imagens.”

Victor Sampaio trabalhou em Ron Bugado de forma totalmente remota: primeiro do Canadá, depois do Brasil (Crédito: Filmelier)
Victor Sampaio trabalhou em ‘Ron Bugado’ de forma totalmente remota: primeiro do Canadá, depois do Brasil (Crédito: Filmelier)

O artista complementa: “Quando pode assistir [à primeira versão] é quando as coisas boas e os problemas do filme ficam muito aparentes, né? Então a gente sabia que, ‘ah, talvez o primeiro ato do filme não tá funcionando muito bem. O segundo tá ok. O terceiro ainda não está tão emocionante como a gente queria’. Então a gente vai voltando em pontos específicos do filme para que esses momentos funcionem.”

“Bugando” a pandemia

Assim como aconteceu conosco aqui no Brasil, a Locksmith teve que se adaptar ao trabalho remoto na fase final de produção de ‘Ron Bugado’ – resultado, claro, das medidas sanitárias para conter o avanço da covid-19. Os dois artistas contam o impacto dessas mudanças no trabalho deles.

“Eu trabalhei à distância durante todo o projeto”, relembra Victor Sampaio. “Eu trabalhei uma parte morando no Canadá e depois eu voltei pro Brasil e eu continuei trabalhando daqui. Então assim, é estranho dizer isso, mas pra mim ficou até melhor, assim entre aspas, porque aí todo mundo está em casa, começaram a ter vários eventos do estúdio em que tudo acontecia online, então eu até podia participar mais. Mas em termos de produção continuou tudo numa boa, cada um na sua casa. As reuniões eram até mais fáceis de juntar todo mundo, estava sempre todo mundo pronto.”

Já Carlos Lutterbach, que frenquentava o estúdio fisicamente, sentiu um pouco mais na pele os efeitos da pandemia – ainda que a sua participação em ‘Ron Bugado’ já estivesse finalizada.

Carlos Lutterbach, que vive em Londres, viu a rotina de trabalho mudar com a chegada da pandemia (Crédito: Filmelier)
Carlos Lutterbach, que vive em Londres, viu a rotina de trabalho mudar com a chegada da pandemia (Crédito: Filmelier)

“É, eu estava em Londres trabalhando no estúdio [no começo da pandemia]. Eu trabalhei na primeira fase do filme e depois eu fui fazer outros projetos. Então esse projeto eu não estava trabalhando durante a pandemia”, conta. “A gente tem uma sorte de poder trabalhar como a gente trabalha. Eu imagino que pro Victor seja parecido comigo, é que a maior parte do meu trabalho de desenho eu faço no computador. Não tudo, até faço na mão e às vezes uso até post-it pra fazer storyboard. Mas essa facilidade de trabalhar no computador te dá uma liberdade. Já não era incomum em outros momentos ter trabalhado em casa, simplesmente porque era mais conveniente trabalhar em casa ou porque, enfim, se a produção é menor não tem a necessidade de estar todo mundo na mesma sala.”

“A maior diferença entre trabalhar na pandemia e fora da pandemia são os encontros espontâneos”, continua Lutterbach. “Quando você está num ambiente de estúdio, eu estou aqui e olho ‘pô, o que você tá fazendo?’, aí alguém conta uma piada, alguém acha alguma coisa engraçada e faz um desenho e coloca na parede. Então aquele desenho vira uma ideia que depois entra no filme. Ou você tem conversas espontâneas, ou alguma coisa que você não está achando que está funcionando e alguém fala uma coisa, você fala e de repente… entendeu? Tem a coisa da espontaneidade. Por outro lado, em casa, você tem a vantagem de controlar o seu tempo melhor e se concentrar também sem nenhum ruído.”

“Faz muita falta você estar fazendo seu storyboard e poder simplesmente virar sua cadeira para trás e falar ‘gente, vem aqui dá uma olhada no que eu fiz! Vamos testar'”, complementa Sampaio. “É você mostrar sua ideia e ter a reação das pessoas na hora. A gente até tenta simular essas coisas pelo Zoom e tal e todo mundo é sempre muito aberto, nosso supervisor sempre estava lá e podia mandar uma mensagem: ‘Ah, você tem cinco minutos e tal pra ver o que a gente tá fazendo?’. Mas não é a mesma coisa. Mas a gente tentou ao máximo simular o mesmo modo de trabalho só que de casa.”

Ron Bugado fala das amizades - seja entre Ron e Barney, mas também do garoto com sua família e colegas de escola (Crédito: divulgação / 20th Century Studios)
‘Ron Bugado’ fala das amizades – seja entre Ron e Barney, mas também do garoto com sua família e colegas de escola (Crédito: divulgação / 20th Century Studios)

“[‘Ron Bugado’] fala sobre amizades, né. Então essas amizades foram criadas, tanto que o Victor falou que criou amizades mesmo longe um do outro. E a gente faz isso dentro do espaço, então acho que se o ambiente é positivo ele permanece positivo também”, fecha Lutterbach.

A dublagem: o fim do processo

Vale ressaltar que, durante a produção de um longa-metragem animado, o trabalho de voz é parte importante: ele acontece no meio do processo, com os atores gravando suas vozes e elas servindo, literalmente, de guia para a parte final da animação.

É como explica Sérgio Malheiros, ator de novelas globais como ‘Totalmente Demais’ e que trabalhou na dublagem brasileira de ‘Ron Bugado’: “Eles [os atores de voz originais] simplesmente interpretaram, criaram, e a animação foi feita em cima da voz deles.”

Quando o longa chega ao Brasil, ele está pronto e acabado – incluindo aí as vozes em inglês. Por isso, o trabalho do dublador é o final do processo, chamado de localização. “O caminho ao contrário”, como afirma Malheiros. A partir daí, surge um desafio: respeitar a obra original enquanto tenta-se imprimir algo local e do próprio ator que empresta sua voz ao personagem.

“A gente recebe a dublagem original, de como os atores norte-americanos colocaram a voz, e a gente tenta se nortear por isso”, revela Sophia Abrahão, também atriz de novelas da TV Globo e presente no elenco de dublagem no longa.

“E é como se fosse a referência mesmo. A intenção é fazer com aquela mesma tonalidade, com aquele mesmo registro vocal. O meu grande desafio foi copiar essa tonalidade aguda, bem estridente, que a atriz norte-americana fez. Então eu tive que trazer isso para a senhorita Thomas, que é um registro completamente diferente da minha voz. Ao mesmo tempo que é desafiador ter essa referência e se nortear por isso, acaba sendo um facilitador também.”

Sophia Abrahão, Sérgio Malheiros e Marcelo Serrado em papo com o Filmelier: os atores entraram com a dublagem após ‘Ron Bugado’ estar finalizado (Crédito: Filmelier)

Assim como para os companheiros de elenco, ‘Ron Bugado’ foi a estreia de Marcelo Serrado (‘Crô: O Filme’) como dublador – que ressalta a importância dos profissionais do estúdio de dublagem para conseguir executar o seu trabalho na produção. “No caso do meu personagem tinha tudo isso dele ser inseguro, então de ter a voz mais lá em cima, nasalada, e me aproxima muito do original. A ajuda do profissional da Disney foi fundamental para chegar no bom resultado”, diz o ator – que dá voz ao pai do protagonista, Graham.

Agora, uma coisa é inegável: ainda que os animadores (mesmo os brasileiros) não tenham concebido Marc Wydell com Sérgio Malheiros em mente, é inegável a semelhança física entre os dois. Não por menos, o ator tem utilizado o personagem, que é o criador do robô-título do filme, com o seu avatar no Instagram. Por isso, a brincadeira foi inevitável.

“Você está mentindo. O Marc foi feito para você. Eu via no filme, eu via você. Impressionante”, fiz questão de dizer à Malheiros. “Pô, verdade”, respondeu o ator com um sorriso de satisfação no rosto.

Pode parecer algo pequeno, mas ter um CEO bem-sucedido de um grande organização da ficção retratado como um jovem negro é, também, um pouquinho de diversidade – e alguém para que Sérgios do Brasil e do mundo possam se identificar.

‘Ron Bugado’ está em cartaz nos cinemas de todo o Brasil. Clique aqui para saber mais sobre a animação – e para encontrar o link com horários das sessões e para a compra de ingressos.

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