Conheça a lenda por trás de ‘Selva Trágica’, novo filme da Netflix Conheça a lenda por trás de ‘Selva Trágica’, novo filme da Netflix

Conheça a lenda por trás de ‘Selva Trágica’, novo filme da Netflix

‘Selva Trágica’ fala sobre o mito iucateca maia da Xtabay, uma femme fatale sobrenatural que atrai homens na floresta

Lalo Ortega   |  
18 de junho de 2021 10:30

Depois de uma notável passagem pelos festivais mundiais e um lançamento limitado nos cinemas mexicanos, ‘Selva Trágica’ chegou à Netflix na última semana – incluindo no Brasil. Embora seja uma ficção ambientada na década de 1920, o filme resgata uma figura do imaginário maia: o Xtabay.

Dirigido pela cineasta mexicana Yulene Olaizola (de ‘Paraísos artificiales’), o longa segue uma jovem chamada Agnes (Indira Rubie Andrewin), que tenta fugir de um casamento arranjado pela selva entre a fronteira do México com as Honduras Britânicas (hoje Belize).

O caminho de Agnes cruza o de um grupo de trabalhadores, que extraem látex das árvores, com quem ela não consegue se comunicar devido à barreira do idioma. No entanto, sua presença no grupo desencadeia uma série de eventos violentos, muitas vezes fatais.

Publicidade

Veja abaixo o trailer, em espanhol:

Embora parcialmente inspirada no romance ‘Caribal: El Infierno Verde’ de Rafael Bernal, a narração em off (com voz masculina) de ‘Selva Trágica’ se refere constantemente a um personagem das lendas maias: a Xtabay, também chamada de X’tabay, Xcab ou Xcabay.

Como é frequente no caso de tradições orais indígenas ao longo do tempo, inclusive devido a colonização, as versões e origens da lenda variam e podem até ser contraditórias. Aqui contamos um pouco dessas histórias, até porque o roteiro de Olaizola e Rubén Imaz traz uma reinterpretação da lenda.

A lenda de Xtabay

Para o portal mexicano Pie de Página, a jornalista Lydiette Carrión escreve que podemos falar sobre várias concepções para a lenda: uma versão sincrética católica se destaca, mas há várias outras, de resistência indígena, que rejeitam essa interpretação.

Segundo Carrión, a primeira é uma releitura de Antonio Mediz Bolio, poeta, jornalista e historiador maia nascido em Yucatán. Em 1922, ele publicou o livro ‘La leyenda del faisán y el venado’, “inspirado nas lendas maias”.

“Ali, o Xtabay – ou Xcabay– que ele [Bolio] recriou é o uma Llorona maya [lenda folclórica mexicana sobre um fantasma feminino belíssimo] que exala sensualidade, que cheira a sexo a quilômetros de distância e cuja presa são os jovens apaixonados”, diz Carrión.

Em suma, esta versão é meramente motivada moralmente por uma perspectiva católica. Fala de uma mulher mais bonita que todas, vestida de branco, “a mulher que você quer em todas as mulheres e a que ainda não encontrou”, que seduz e pune os homens que andam nas ruas à noite para cometer adultério.

No entanto, há outra versão conhecida que, superficialmente, narra a origem do Xtabay. Mas esta interpretação vai mais longe, pois é “uma brincadeira maia que zomba dos colonizadores”, e “uma resistência indígena à hipocrisia espanhola ou crioula”.

Em essência, a lenda fala de duas mulheres muito bonitas que viviam em uma aldeia. Uma delas se chamava Utz-Colel (“boa mulher”), que não se entregou ao “pecado do amor”, como fez Xkeban (“a pecadora”).

No entanto, enquanto Xkeban era compassiva, ela ajudou animais doentes e indefesos; Utz-Colel era fria, rígida e austera, desprezava os humildes por se considerar superior a eles.

Um dia, Xkeban morre abandonada, apenas acompanhada de seus animais. Porém, de seu cadáver se desprende um perfume que atinge toda a cidade. Depois de ser enterrada, seu túmulo foi preenchido por flores silvestres.

No entanto, Utz-Colel, que se orgulhava de sua virtude, rejeitou o fato como algo do diabo e garantiu que os portões do céu se abririam para ela. Mas, quando ela morreu, seu cadáver exalava um fedor insuportável e, ao amanhecer, as flores de seu túmulo haviam desaparecido.

Com o tempo, Xkeban se converteu em uma flor doce com um cheiro inebriante chamada Xtabentun. Enquanto Utz-Colel se tornou a flor de Tzacam, que não tem cheiro e vem de um cacto cheio de espinhos.

Sem perceber que seu destino era ditado pela frieza de seu coração, Utz-Colel pediu ajuda aos espíritos malignos para se tornar humana novamente. Foi assim que ela se tornou Xtabay, a mulher que emerge da flor Tzacam para seduzir os homens e matá-los “no frenesi do amor infernal”.

Abaixo tem um vídeo sobre a lenda, em espanhol:

Ao contrário da interpretação católica, esta versão maia não fala da sexualidade feminina de uma perspectiva moral. Pelo contrário, fala de uma mulher que não dá a si mesma nem aos outros amor ou prazer, que “não se entrega ao pecado” e que acredita que assim será salva. Porém, para os maias, é uma flor sem aroma ou sem alma.

Como ‘Selva Trágica’ reinterpreta a lenda do Xtabay?

A primeira menção ao Xtabay em ‘Selva Tragica’ vem antes dos 25 minutos de filme Até então, sabemos que o Chieftain (Dale Carley) e seus homens estão atrás da protagonista, Agnes, envolvidos em um casamento arranjado.

Em sua fuga, ela é acompanhada por uma enfermeira, Florence (Shantai Bishop), e um peão, Norm (Cornelius McLaren). Durante uma curta cena, vemos que esses dois estão sexualmente envolvidos.

Norm e Florence são mortos em um ataque do Chieftain, e Agnes passa a noite ferida, dentro da selva. Embora o Xtabay ainda não seja mencionado pelo nome, já existem referências à lenda de Xkeban e Utz-Colel durante a última (aparentemente imaginária) troca entre Agnes e Florença. Aqui, a primeira confessa à segunda que ainda é virgem e quer saber mais sobre sexo (“você que já esteve com tantos homens”). Ao lado do corpo da segunda, há flores onde antes não havia.

La Xtabay em 'Selva trágica'
“Existem lindas flores ao seu redor.” (Foto: divulgação/Netflix).

“Há flores ao seu redor também?”, Florence pergunta a Agnes. Não há.
Na manhã seguinte, apesar de estar baleada, Agnes se recupera, troca de roupa com o corpo de Florence e vai embora. É neste ponto que abandonamos momentaneamente o protagonista para mudar nosso foco para um grupo de trabalhadores que extraem goma na floresta.

“Quando você anda pela selva, você deve sempre ir em silêncio”, diz a narração masculina. “Não pare para observar a natureza. Se ouvir vozes atrás de você, não se vire para olhar. Que a sua sorte de que aquele que você teme e deseja não apareça diante de você. Porque a mulher Xtabay já conhece o caminho que você está trilhando ”. Logo em seguida, o grupo conhece Agnes.

Do ponto de vista masculino, a lenda contada se assemelha mais à concepção católica, sobre uma mulher vestida de branco que espreita homens adúlteros para seduzi-los e matá-los. Eles são as vítimas desta narrativa.

Em ‘Selva Trágica’, embora o adultério não esteja em jogo, ainda há um fator da sexualidade: além do Cacique, que queria tomar Agnes por esposa, mais dois personagens são seduzidos por ela. No entanto, como ela é encontrada pelo grupo, outros membros sucumbem a circunstâncias que, à primeira vista, parecem coincidências não relacionadas.

Selva trágica
Os figurinos também ecoam a lenda: Florence e Agnes usam branco (Foto: divulgação/Netflix).

Através do enigma de sua protagonista, há uma reinterpretação da lenda de Xtabay de uma outra perspectiva. Aqui os homens adúlteros não são punidos, mas sim os gananciosos, que procuram destruir para possuir. Não importa se é sobre possuir as mulheres ou a natureza.

No caso do filme, ambos se tornam uma força única e indistinta que, embora implacável, indomável e finalmente incompreensível, não é destituída de bondade. Basta ver quem fica de pé – e o porquê – quando chega o enigmático final do longa-metragem.

Confira mais sobre ‘Selva Trágica’ – incluindo o link para assistir ao filme online.

Publicado originalmente na edição mexicana do Filmelier News.