'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo': o cinema em anarquia
Dirigido pela dupla Dan Kwan e Daniel Scheinert, 'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo' mostra que o espetáculo no cinema não está em guerra com as grandes ideias
Depois de ver 'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo', o diretor e roteirista Paul Schrader ('O Contador de Cartas') disse em seu Facebook: "Apreciei mais do que gostei". E, ainda, acrescentou: "Acho que você precisa ter crescido em uma sociedade de mídia fragmentada para se sentir confortável com isso".
A afirmação dele é interessante, pois diz muito não apenas sobre o filme em si, mas também sobre o momento cultural e o ecossistema midiático em que está inserido.
E, é necessário ressaltar, a conversa na mídia em torno do filme – que estreia nos cinemas brasileiros amanhã, 23 de junho, mas já em cartaz em sessões de pré-estreia – o coroa como “o melhor do ano” (seja lá o que isso signifique).
- Leia também: Filmes sobre multiversos
Isso apesar de, à primeira vista, parecer que o longa-metragem dirigido por Daniel Scheinert e Dan Kwan (conhecidos coletivamente como Daniels) comete um dos pecados mais criticados do cinema contemporâneo: ser um produto hiperestilizado – e hiperativo – sem considerar muito a substância. Dada a sua natureza, essa hiperatividade é praticamente uma necessidade para 'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo'.
Sua trama segue Evelyn Wang (Michelle Yeoh), uma imigrante chinesa nos Estados Unidos que luta para manter uma lavanderia funcionando com seu marido, Waymond (Ke Huy-Quan, de 'Os Goonies'), que quer pedir o divórcio. Ao mesmo tempo, sua filha profundamente infeliz Joy (Stephanie Hsu) tenta fazer com que sua mãe aceite sua namorada, Becky (Tallie Medel).
Tudo isso vem nos primeiros minutos, antes de Evelyn ser informada por uma versão alternativa de Waymond que existe um multiverso e que uma entidade extremamente poderosa conhecida como Jobu Tupaki ameaça destruir tudo. Agora, ela deve pular de um universo para outro, para as consciências de seus "outros eus", e assim aprender as habilidades necessárias para salvar todo o multiverso.
Em outras palavras: há bastante coisa para desempacotar aqui, e os diretores nos levam para o passeio através de uma enxurrada visual de cortes rápidos, sequências de imagens mais curtas que um TikTok, bem como ondas de cores e referências à cultura pop. É o tipo de ataque aos sentidos que, em outros contextos, cineastas consagrados teriam comparado a um "parques de diversões".
O apontamento de Schrader é pertinente, pois o filme dos Daniels seria a antítese do cinema que o impressionou e sobre o qual teorizou ao escrever 'O Estilo Transcendental no Cinema': aqueles filmes cuja abordagem minimalista da forma e da narrativa (planos de longa distância, ação pouco expressiva, austera ou sem movimentos de câmera) reservou um impacto emocional revelador e quase espiritual para os momentos de pausa. Ou seja, um tipo de cinema para uma sociedade cujas mídias eram menos fragmentadas.
Isso significa que o frenesi audiovisual de 'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo' o torna algo desprovido de emoções profundas e reveladoras, mais parecido com os filmes de “parque de diversões”? Que nada. Porque por baixo de seus visuais de cair o queixo, bagels cósmicos e dedos de salsicha malucos, há uma história que vai ao coração da experiência de ser humano no universo.
O auge do hipercinema
A primeira coisa que se deve dizer sobre o excesso visual do filme é que talvez seja um dos poucos casos contemporâneos em que se justifica tematicamente. Afinal, esta é uma história em que a consciência da protagonista salta de um universo para outro, aprendendo habilidades para defender os seus.
Inevitavelmente, isso nos leva a uma fragmentação temporal e narrativa típica de seu título. 'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo' alude à experiência de Evelyn, experimentando várias vidas alternativas ao mesmo tempo, existindo em seu universo natal simultaneamente com outros. É um conceito narrativamente complexo, mas que os diretores conseguem entregar visualmente desde o início: a tela é fragmentada em duas, assim como a mente da protagonista.
Uma vez apresentado o conceito de multiverso, 'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo' abandona esse recurso visual e começa a saltar entre o universo da nossa Evelyn e os demais, mas sem perder o fio da narrativa. Mais tarde, a existência de mundos infinitos é representada por uma enxurrada de imagens de Evelyn em outras vidas, em rápida sucessão.
Mas também é preciso dizer que “tudo em todo os lugares ao mesmo tempo” evoca nossa maneira de vivenciar o cinema e a mídia hoje. Temos a tela de cinema, mas também as de televisores, computadores, celulares e até as de relógios inteligentes. Assistimos a programas na sala de estar e tuitamos sobre eles depois (se bobear ao mesmo tempo).
Claro que não é a forma ideal de consumir um filme (e sim, existem argumentos muito válidos sobre os danos psicológicos desta fragmentação cognitiva), mas a verdade é que as nossas mentes estão hoje mais habituadas a estes saltos constantes entre torrentes de informações.
Pode ser esmagador, com certeza, mas o filme não poderia ser desqualificado por isso, como foi feito por algumas críticas. Se alguma coisa, os Daniels conseguem manter a coerência narrativa em meio ao caos da informação multiversal.
Pode-se mesmo dizer que 'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo' é um dos exemplos mais originais do potencial que o cinema ainda tem em nosso tempo, após sua infecção com o germe da televisão, das redes sociais, do streaming (hipermídia, em suma), fez com que se transformasse no hipercinema que consumimos hoje: multigênero, intertextual, autorreferencial e frenético, mas fértil para a anarquia criativa.
'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo' é a luta contra o niilismo
No entanto, apesar do caos que permeia sua superfície, os Daniels conseguem manter a coerência narrativa para contar uma história que, embora pareça ser uma das muitas sobre o valor da família e do amor, na verdade se aprofunda em aspectos mais densos e universais da experiência humana.
Vale a pena manter as surpresas, mas basta dizer que, por meio de sua temática multiversal, 'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo' é um filme que encara de frente o abismo escuro do vazio existencial do absurdo.
Se existem infinitas versões de nós mesmos, moldadas pelo acaso e as menores decisões podem levar a existências infinitas igualmente insignificantes umas para as outras, então nada mais importa. Ou pelo menos é o que pensa um dos personagens principais do filme, que abraça um niilismo absoluto.
A protagonista, por outro lado, vive entediada, sobrecarregada pelos problemas diários de sua existência (como uma auditoria iminente de sua lavanderia, ou ter que cuidar de seu pai exigente) e com as desilusões do que poderia ter sido. Quando ela vislumbra outras vidas em que sua existência é objetivamente melhor, o arrependimento e o desespero fazem com que ela abrace o pessimismo.
Mas assim como fizeram com seu filme anterior (sobre um cadáver ofegante de Daniel Radcliffe utilizado como um canivete suíço), os Daniels levam sua protagonista ao fundo do poço, antes de chegar à revelação.
E, novamente, é melhor não estragar as surpresas. Mas através de seu frenesi e palavrões hilariantes, 'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo' é um filme que, em vez de evitar o absurdo, decide abraçá-lo para oferecer o que pode ser seu único antídoto: enfrentar o medo e a escuridão avassaladora do nada, com amor em uma mão e propósito na outra.
O que nos mostra, em primeiro lugar, que grandes ideias e emoções transcendentais não devem necessariamente ser reservadas para filmes de virtuosismo autoral quase acadêmico. Eles também podem vir em um filme blockbuster de sucesso na era do TikTok.
E a segunda coisa é que ainda há esperança para os lançamentos de verão. 'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo' é, sem dúvida, o filme mais bonito que existe estrelado por pedras com olhinhos de plástico, em que as pessoas usam vibradores como espadas e lutam com troféus espetados na bunda.
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Lalo Ortega é um crítico mexicano de cinema. Já escreveu para publicações como EMPIRE em español, Cine PREMIERE, La Estatuilla e mais. Hoje, é editor-chefe do Filmelier.
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