‘Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo’ e a crise criativa do cinema independente ‘Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo’ e a crise criativa do cinema independente

‘Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo’ e a crise criativa do cinema independente

Ainda que seja emocionante, ‘Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo’ insere uma chuva de elementos para chamar a atenção do público

Matheus Mans   |  
25 de junho de 2022 15:01
- Atualizado em 8 de julho de 2022 09:57

Fique calmo: sim, gostei de ‘Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo‘, estreia dos cinemas da última quinta-feira, 23. É um cinema vivo, divertido e que sabe emocionar. Quando saí da sala de exibição, tinha certeza de que assisti a um bom filme. Mas, com o passar do tempo e conforme reflito mais sobre o longa de Dan Kwan e Daniel Scheinert, passo a ter uma impressão cada vez mais forte: o cinema independente está deixando a experimentação de lado e abraçando apenas certezas.

Mas vamos com calma. Primeiro, vamos entender o cinema dos Daniels — que é como os diretores do filme assinam suas produções. Sempre com proposta autoral, sendo responsáveis por direção e roteiro, a dupla começou a carreira nos videoclipes, além de alguns curtas e episódios de séries. O primeiro longa-metragem veio com ‘Um Cadáver Para Sobreviver’, em 2016, sobre um rapaz (Paul Dano) que precisa sobreviver enquanto está perdido em uma ilha.

Cena de Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo
Michelle Yeoh é a alma de ‘Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo’ (Crédito: Divulgação/Diamond Films)

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Filme de sobrevivência comum? Nada disso. O personagem acaba fazendo “amizade” com um cadáver (Daniel Radcliffe). Era tudo que o precisava para chamar a atenção: o filme pegou um dos maiores astros daquela época, estrela da saga ‘Harry Potter’, e o usou como uma pessoa morta, sem falas. Era certeza, naquele momento, de que o longa seria, no mínimo, comentado. Afinal, quem não ficaria curioso com uma produção com essa premissa?

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Depois, chega ‘The Death of Dick Long’, filme de comédia sombria que fala, de novo, sobre morte: dois caras tentam ocultar o falecimento de um amigo. Não fez sucesso algum, mas reforçou a ideia de que os Daniels estariam investindo, talvez, em um cinema de choque. Chocaram com as piadas desse, com Radcliffe morte no outro — e soltando gases de decomposição. Mas ‘Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo’ mostra que não. É, na verdade, um cinema de certezas.

A certeza de ‘Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo’

Assim como ‘Um Cadáver para Sobreviver’ tinha certeza do boca a boca com Radcliffe e ‘The Death of Dick Long’ tentou apostar em piadas e situações absurdas, ‘Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo’ circunda um tema que não tinha como dar errado: o multiverso. Os diretores, que foram inclusive convidados para a direção da série ‘Loki’, sabiam que o tema estaria em alta. Seria muito comentado. Fazer um filme “diferente” sobre isso seria uma aposta certa.

Na história, acompanhamos Evelyn (Michelle Yeoh), uma mulher que precisa dar um jeito em sua vida quando descobre que existem universos paralelos e, do nada, começa a transitar entre eles para escapar dos problemas que surgem por todos os lados. Os dois principais são as contas de sua lavanderia, questionadas pelo fisco (Jamie Lee Curtis, excelente em seu papel), e a relação complicada que mantém com a filha, o pai e o marido, prestes a divorciar.

É, como disse, um cinema de certezas. Trata-se, na verdade, um parente bem próximo do “filme de algoritmo”. Só que ao invés de trabalhar na limitação de fazer sucesso surfando no que há de sucesso da internet, o “cinema de certezas” trabalha com elementos que são certeiros no cinema contemporâneo como um todo. São temas, atores ou decisões que geram buzz e encantam, mesmo sem razão de ser ou, principalmente, como o seu objetivo central e final.

Isso vem com dois efeitos. Primeiramente, deixa o cineasta confortável em usar apenas um elemento para mascarar erros ou problemas. O espetáculo acima da história. Depois, há a questão desses filmes ficarem presos em certos elementos de sucesso e não conseguirem se desenvolver da maneira correta. Uma coisa alimenta a outra. E o filme, assim, faz certo sucesso com o público sedento para aplaudir alguma produção que use coisas pop para ir além.

É o lado contrário da moeda do “cinema de autor”. Parece um filme muito original e ousado, mas no fundo é só um elemento batido (ou pop) usado para puxar a atenção do público. E é isso que acontece com ‘Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo’: os Daniels embarcam no sucesso do multiverso, embalam com uma história divertida e apostam tudo nas atuações, com a ânsia de esconder uma história exageradamente simples e que já vimos aos montes por aí.

Crise no cinema independente

O que preocupa um pouco é observar isso não como algo isolado, mas como parte de um problema maior que está afetando o cinema independente. Essas produções com menos orçamento, quando falamos de cinema americano, geralmente eram associados ao que havia de mais experimental, ousado e criativo. No entanto, nos últimos anos, percebe-se que o cinema independente está seguindo um caminho que busca apenas agradar e não mais provocar.

‘Cha Cha Real Smooth’ é bom, mas fica perdido em uma camada de autoajuda (Crédito: Divulgação/Apple)

Observe alguns grandes sucessos do Festival Sundance, um dos faróis do cinema independente. ‘No Ritmo do Coração‘ fez bonito, em crítica e bilheteria, e até mesmo conquistado o Oscar de Melhor Filme em 2022. Mas será que era pra tanto? Em uma história realmente bonita, há uma camada de autoajuda. Esse elemento, aliás, está cada vez mais presente. ‘Cha Cha Real Smooth‘ é, basicamente, um filme simplório com uma mensagem, no fundo, bonita.

Em Sundance de 2021, podemos pegar ainda mais alguns exemplos, como ‘Juntos Mas Separados’ e até mesmo o bom ‘Pleasure‘ que, na tentativa de sair da caixinha para falar sobre indústria pornográfica, fica com medo de chocar demais. Não acho que nenhum desses filmes citados é ruim — pelo contrário, ‘Pleasure’ e ‘Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo’ devem se manter na lista dos bons filmes de 2022. Mas falta aquele sopro de originalidade, ousadia.

Talvez isso faça parte de algo ainda maior: o cinema de espetáculo. No momento, as boas bilheterias partem daqueles filmes que criam comoção nas salas. A emoção precisa ficar saliente. E parece que, enfim, o cinema independente se rendeu para essa necessidade de ser algo a mais do que histórias provocativas e ousadas. É preciso ter uma certeza ali para que o filme vá bem — nas bilheterias, no boca a boca, no popular. Fica a preocupação com o que vem por aí.

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