Crítica de ‘Vidas Passadas’: os caminhos não vividos Crítica de ‘Vidas Passadas’: os caminhos não vividos

Crítica de ‘Vidas Passadas’: os caminhos não vividos

Com ‘Vidas Passadas’, sua estreia cinematográfica, a diretora Celine Song levanta questões profundas sobre identidade e destino

Lalo Ortega   |  
23 de janeiro de 2024 09:10
- Atualizado em 15 de março de 2024 17:25

Ao estar tão enraizados no coração de nossa existência como espécie, o amor e o destino têm sido, talvez, duas das questões mais exploradas pelo cinema – e por qualquer outra expressão humana, na verdade. Exploradas, para ser honesto, até o ponto de serem arrancadas de suas raízes existenciais profundas e trivializadas em sentimentalismos sobre amores verdadeiros. E então surge um filme como Vidas Passadas, que se atreve a perguntar: o que são o amor e o tempo, se não os escultores das fortunas e tragédias que nos definem como pessoas?

Sob uma fachada modesta e um minimalismo narrativo, o longa-metragem de estreia da diretora Celine Song – que chega aos cinemas do Brasil em 25 de janeiro – abre espaço para questões tão fundamentais do espírito humano quanto o amor através do tempo, o arrependimento pelos caminhos não percorridos e a conjugação de um certo verbo, carregado de histórias paralelas e possibilidades mortas: “teria”.

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A história de Vidas Passadas transcende sua aparente simplicidade. Parafraseando a consciência metanarrativa de um de seus personagens, é a crônica de um amor de infância interrompido pelas infinitas possibilidades de um futuro imaginado. Na Young e Hae Sung são amigos, o primeiro amor mútuo da infância em uma escola na Coreia do Sul. Mas um dia, os pais da garota decidem emigrar. “Os asiáticos não ganham o Prêmio Nobel”, explica ela, que se imagina como escritora na idade adulta.

A vida adulta chega em um piscar de olhos, uma fugacidade que Song exalta. Através da magia do Facebook, Hae Sung (Teo Yoo) finalmente encontra a amiga que perdeu na infância: agora ela é canadense e se chama Nora (Greta Lee).

Vidas Passadas começa quando Na Young e Hae Sung seguem caminhos separados (Crédito: Califórnia Filmes)

A conexão é reavivada e, graças ao Wi-Fi, supera a vasta distância do Atlântico e do fuso horário. Eles falam sobre o que estudam e sobre seus sonhos – Nora ainda quer ser escritora. As videochamadas são um paliativo para uma saudade frustrante.

Mas, no final, seus desejos os separarão: ela foi aceita em um retiro para artistas em Montauk. Ele deseja viajar para a China. Eles concordam em se dar uma breve pausa, mas param de se falar por outra década. Seus caminhos assintóticos correm paralelos em direção ao futuro, sem se tocar. Eles terão que se tocar apenas uma vez, mas não na realidade.

Amor à Flor da Pele

Devo admitir que, dada a sua cadência melancólica e a história de um amor frustrado, Vidas Passadas me lembrou constantemente de Amor à Flor da Pele (ou In the Mood For Love), o clássico romântico de Wong Kar-wai. Um viés não tão inesperado para quem escreve, alguém com uma predisposição quase masoquista à nostalgia (talvez o motivo de ser seu filme favorito).

Ambos são, em seus modos respectivos, filmes carregados do espírito trágico do “teria”. Compartilham também o fato de serem protagonizados por casais de personagens agradáveis à vista e capazes de expressar essa saudade através do movimento mais sutil do olhar ou da cabeça.

No entanto, Vidas Passadas busca levar suas reflexões sobre essa melancolia romântica em direções diferentes. Vamos ignorar, por exemplo, que a geografia foi derrotada pelas virtudes da internet como antiga inimiga mortal do arrependimento e do coração partido. Talvez, em outra época, o personagem de Tony Leung pudesse encontrar novamente o de Maggie Cheung.

Na realidade, à medida que o filme de Song se estabelecia em minha mente, as semelhanças com o de Wong Kar-wai tornavam-se mais superficiais e casuais. A cadência sensual do hong-konguês, capaz de transformar até a fumaça de cigarro na imagem mais romântica, não se insinua aqui.

Também não há tantos olhares furtivos, válvulas de escape para os desejos reprimidos pela moral de sua época. O minimalismo narrativo da diretora se traduz visualmente, tecendo metáforas audiovisuais austeras, livres do artifício sensual de Wong, mas não menos poderosas por isso.

Vidas Passadas tem tanto a ver com identidade quanto com romance (Crédito: Califórnia Filmes)
Vidas Passadas tem tanto a ver com identidade quanto com romance (Crédito: Califórnia Filmes)

Assim, em Vidas Passadas, o desejo se torna menos uma questão de um romance não consumado e mais uma questão de por que não poderia ter sido de outra forma. Porque, como reflete um dos personagens, se estivéssemos diante de uma história romântica na forma mais piegas de Hollywood, haveria um profundo ressentimento pelo terceiro elemento. Se essa ideia fosse levada às últimas consequências, haveria até um casamento interrompido, choro, declarações de amor no último momento.

Mas Song não está tão interessada nesse melodrama, nem tão interessada em criar uma janela para um sentimento perdido, como faria Wong. Inspirada parcialmente em sua própria experiência, ela busca explorar os caprichos do destino que moldam não apenas a história, mas também a nós mesmos.

A vida e seus caminhos

É interessante notar que, em Vidas Passadas, Song também faz das cidades outro personagem, ao mesmo tempo indistintos seus habitantes. O mundo nos molda, ou nós a ele? Talvez ambos, mas a diretora não hesita em nos fazer notar o esmagador que é a primeira alternativa na forja da identidade.

Os panoramas urbanos de Seul, Pequim e Nova York falam toneladas sobre quem são seus personagens em determinado momento. Em nenhum outro instante do filme isso é mais evidente do que quando, finalmente, os amores de infância se reencontram. Passeiam por Coney Island sobre os rumos que suas vidas tomaram, mas Song mantém nossos olhares no horizonte nova-iorquino. Nora e Hae Sung são como formigas no panorama. São, também, na corrente do tempo.

Porque, no final, todos somos aqueles crianças que nos apaixonamos na escola primária e os romances que tivemos. Mas também somos os sonhos que nos levaram através de nossas vivências por caminhos distintos, às vezes opostos, às vezes tragicamente assintóticos, às vezes convergentes pela arbitrariedade do destino ou de um coração insatisfeito. E onde ficam essas crianças, então?

Em Vidas Passadas, as pessoas mudam e, com elas, a possibilidade de amor (Crédito: Califórnia Filmes)
Em Vidas Passadas, as pessoas mudam e, com elas, a possibilidade de amor (Crédito: Califórnia Filmes)

Vidas Passadas nos fala, valendo a redundância, sobre nossas vidas passadas. Mas o faz em vários sentidos. Explorada no próprio filme, está a noção oriental do In-yun, essa espécie de destino cármico que nos vincula aos nossos amores através de infinitas reencarnações. Os romances que não puderam ser nesta vida, talvez o foram ou serão em outra.

Mas essas vidas passadas são também aquelas partes de nós que nos despojamos por decisão, ou que nos foram arrancadas pelo acaso. Serão, para sempre, parte de nós ao longo de nossa única vida, segundo a visão ocidental. Como diz outro personagem, cada vez que perdemos algo, ganhamos algo. O preço do futuro não é apenas renunciar ao passado, mas também a tantas outras possibilidades. Necessário, mas sempre doloroso.

E finalmente, o filme de Song se assemelha ao de Wong, nos levando ao mesmo destino agridoce que Tony Leung: “lembra daqueles anos como se estivesse olhando através de uma janela empoeirada. O passado é algo que se pode ver, mas não tocar, e tudo o que recorda é turvo e indistinto”.

Texto publicado originalmente na versão mexicana do Filmelier News.

Vidas Passadas chega aos cinemas do Brasil em 25 de janeiro de 2024.

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