De Hércules a Superman, a forma como são contadas as trajetórias dos grandes heróis pouco mudou no decorrer da história humana. Com alguns retoques aqui e ali, elas basicamente seguem o chamado Monomito, a famosa Jornada do Herói. É por isso que, muitas vezes, você sente aquela espécie de déjà vu toda vez que se depara com um relato do gênero – e, quando esse padrão é quebrado, podemos ter algo genuinamente surpreendente ou desastre completo.
‘Adão Negro‘, filme baseado no personagem homônimo e que estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta (20), falha miseravelmente em conseguir qualquer uma dessas duas reações. Ao pretensiosamente tentar apresentar a sua versão para o Monomito, acaba se tornando extremamente formulaico e cheio de clichês, lembrando em alguns momentos o pior do trabalho de Zack Snyder (diretor de ‘Batman vs. Superman‘).
Não dá para dizer que a Warner Bros. Pictures, a DC Films e o principal astro do longa, Dwayne “The Rock” Johnson, não se esforçaram. O longa-metragem ficou anos em gestação, com o ator praticamente pegando o projeto “pela unha” para criar para si uma franquia super-heróica que traga a grande bilheteria que a sua carreira precisa.
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A aposta fazia sentido: enquanto a WB pouco arrisca com as propriedades dos quadrinhos da DC Comics (tirando exceções pontuais, é quase tudo derivado da trindade Superman, Batman e Mulher-Maravilha), a Marvel Studios fez personagens como Homem-Formiga e Os Guardiões da Galáxia decolarem. O Adão Negro tinha esse potencial para ser algo diferente, pelos lados do estúdio do Pernalonga.
Isso começa pela própria trajetória do personagem nos gibis. Criado em 1945 como um vilão do herói Capitão Marvel (que, mais recentemente, assumiria o nome de Shazam) pela editora Fawcett Comics, o Adão Negro foi redescoberto e revitalizado nos 2000, quando já era uma propriedade da DC. Na visão dos roteiristas Geoff Johns e David Goyer, Teth-Adam foi o herói do fictício país norte-africano chamado Kahndaq e que, após ver sua família assassinada, é corrompido pelo poder e assume o trono de sua terra natal. Ele acaba derrotado pelo mago que lhe deu poderes, chamado Shazam, e é preso pelos milênios seguintes – até ser libertado na nossa era.
No presente, os roteiristas estabelecem o Adão Negro não como um vilão, mas sim como um anti-herói com um senso de justiça extremamente militaresco, que o aproxima de correntes mais nacionalistas e de extrema direita, mas dentro de um contexto de empoderamento africano contra as grandes forças do pós-neocolonialismo. Um personagem complexo, que é colocado frente a frente da Sociedade da Justiça da América – a mais tradicional equipe de super-heróis da DC, que representa aquela visão idealizada de verdade e justiça (tendo, inclusive, lutado na Segunda Guerra Mundial). Por tudo isso, este é um herói que claramente rompe com a Jornada do Herói. Mais do que isso: ele anteviu muito da movimentação política que ocorreria a partir dos anos 2010, introduzindo histórias e pautando discussões que são, hoje, extremamente atuais. Mas você pode apagar tudo isso ao entrar no cinema. Afinal, estará vendo agora a versão hollywoodiana de Adão Negro.
Os roteiristas Adam Sztykiel, Rory Haines e Sohrab Noshirvani, junto com o diretor Jaume Collet-Serra (de ‘Jungle Cruise‘), até que tentam, misturando a versão dos anos 2000 com uma encarnação mais recente nos gibis. Dessa forma, colocam Teth-Adam como esse escravo alçado à condição de herói pelo poder de Shazam e de outros magos, se revoltando contra a opressão do líder de Kahndaq – e, após essa batalha final, ficando preso por milênios. Ele é libertado Adrianna Tomaz (Sarah Shahi), que se revolta contra o domínio da Intergangue, uma organização estrangeira que domina o país quase que como uma milícia paramilitar. O objetivo dos vilões é recuperar uma coroa dos tempos de Adam, algo que daria grande poder. Em meio a esse caos, o herói-título passa a matar todos os inimigos sem pensar duas vezes, enquanto tenta entender qual é a sua função no século XXI. Isso fica mais complexo quando Amanda Waller (Viola Davis) manda nada menos que a Sociedade da Justiça até o país africano para deter o Adão Negro. Dessa forma, o time é usado como ferramenta para criticar o imperialismo de conveniência dos americanos (afinal, o Waller nunca se preocupou com a opressão da Intergangue). É aqui que o roteiro se perde de vez. Sem saber para onde colocar o seu olhar crítico, acaba tendo uma visão míope do imperialismo (do qual, vamos combinar, Hollywood faz parte) e não consegue efetivamente nos fazer refletir sobre as ações do protagonista. Entra-se em um campo perigoso, no qual a história pode causar mais ruído na cabeça de quem assiste do que qualquer coisa. Tudo isso só não é pior que o fato de que a grande revelação do filme, que marca a transição do segundo para o terceiro ato da história, já havia sido antecipada nos trailers. Um spoiler oficial do departamento de marketing da Warner.
Mas tudo isso realmente importa?
Vamos ser sinceros: existe uma enorme diferença entre os problemas que o crítico de cinema vê e aquilo que o público, principalmente os fãs, vão achar do longa. Acontece que, no caso de ‘Adão Negro’, são erros que acabam interferindo diretamente naquilo que o espectador procura: diversão. Com um roteiro e um protagonista complexos para o pouco tempo de desenvolvimento, o filme não sabe se quer ser sério ou bem-humorado. Se perde em inúmeros flashbacks e narrações em off, com personagens que não conseguem se relacionar com o público. Quando cansa de si mesmo, corre e apresenta o maior número de cenas de luta possíveis, sem muito nexo entre elas. Acaba sendo uma experiência exaustiva para quem assiste. Piora: ao propor problemas complexos e apresentar soluções simplistas, o último ato soa como uma enorme vergonha alheia. Em meio a tudo isso, The Rock não empolga. Sabemos que Johnson não tem lá uma grande profundidade de atuação. Porém, ao embarcar em um personagem cheio de nuances como Adão Negro, é importante ressaltar cada camada da transformação do herói, nessa transição no decorrer de uma história de redenção. O astro, ao menos, continua fazendo o que sabe melhor: dar porrada. A parte final do longa é aquilo com o qual já nos acostumamos: uma tela que transborda animação em computação gráfica, sem qualquer lógica, incluindo uma beleza estética e uma câmera lenta que deixariam Zack Snyder com inveja (o que não é um elogio, devo frisar). Porém, os efeitos especiais são corretos e as lutas, por mais que pudessem ser melhor coreografadas, funcionam. A essa altura, a falta de rumo e consistência da Warner Bros. com os filmes da DC é notória. Agora, se produções como ‘Lanterna Verde‘ e ‘Batman vs. Superman’ entraram para a nossa memória por gerar uma verdadeira ojeriza do público (para não dizer ódio), ‘Adão Negro’ nem isso conseguirá. Provavelmente, Adão Negro, tanto filme quanto o personagem, ficarão em breve fadados ao limbo da Pedra da Eternidade. Uma pena.