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Crítica de ‘Godzilla Minus One’: curar a história

O que representa Godzilla? No Ocidente, o conhecimento do monstro japonês tem um viés significativo: primeiro, pela edição de 1956 que insere o ator norte-americano Raymond Burr no filme original de 1954. Em seguida, há a monumental reinvenção que Roland Emmerich lhe deu em 1998. E para as audiências mais jovens, há sua encarnação no ainda mais espetacular – e banal – MonsterVerse. Para este lado do Pacífico, então, Godzilla Minus One – nos cinemas do Brasil desde 28 de dezembro – é uma besta completamente diferente.

Porque, para o país oriental, Gojira (como é chamado lá) é uma manifestação do medo nuclear semeados por Hiroshima e Nagasaki, e perpetuado por detonações subsequentes dos Estados Unidos no oceano. Uma ferida reaberta em 2011 com a catástrofe de Fukushima, cuja devastação – e terrível burocracia – é representada por Shin Godzilla, de 2016.

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Em outras palavras, o gigantesco monstro é, pelo menos em sua origem, muito mais do que o espetáculo sem graça que as interpretações norte-americanas nos fariam acreditar (e, sendo honestos, décadas de filmes japoneses estrelados por lutas de homens em trajes de borracha). No entanto, e consciente de si mesma como a produção que celebra os 70 anos da original de Ishiro Honda, Godzilla Minus One decide não avançar para o futuro, mas olhar para trás. E com isso, nos confronta não apenas com outra manifestação desse medo nuclear, mas com as ramificações do passado que originaram tão grave condenação para o povo japonês.

Godzilla Minus One é um retorno às origens

Godzilla Minus One começa em 1945, no auge da Segunda Guerra Mundial para o Japão. Alegando uma falha em seu avião, um piloto do esquadrão kamikaze, Kōichi Shikishima (Ryunosuke Kamiki), desvia-se de uma missão para uma estação de mecânicos em uma ilha do Pacífico. Não parece haver nada de errado com sua nave: a implicação, então, é que Shikishima fugiu de seu dever. Naquela noite, no entanto, Godzilla emerge na ilha, ceifando as vidas de todos, exceto a de um mecânico (Munetaka Aoki) e a de Shikishima, que hesita diante da oportunidade de se sacrificar para deter o monstro. Desonrado, ele retorna a uma Tóquio devastada para descobrir que os bombardeios ceifaram centenas de vidas, incluindo a de seus pais. Ao longo dos meses, ainda assombrado pelo síndrome do sobrevivente, Shikishima aceita um trabalho perigoso desativando minas marinhas para sustentar uma jovem mulher, Noriko (Minami Hamabe), e o bebê que ele adotou, Akiko.
Em Godzilla Minus One, os protagonistas são as pessoas (Crédito: Sato Company)
No entanto, quando Godzilla ressurge e ameaça a nação já devastada, o ex-kamikaze está determinado a se redimir e finalmente cumprir sua missão… não importa o preço, para o bem e para o mal. Godzilla Minus One é um retorno ao que eram os filmes do monstro em suas origens, antes de serem distorcidos em lutas gratuitas entre monstros/figurantes. O drama está no nível do solo, nas vidas dos cidadãos cujas esperanças são reduzidas a menos que zero pela catástrofe fortuita, arbitrária, esmagadora e implacável, que abre o chão a cada passo e reduz edifícios a poeira e fogo com seu sopro. É no conflito interno de seu protagonista, e em sua busca por propósito, que reside o verdadeiro coração da história. Nesse sentido, Godzilla está muito longe de ser o protagonista, pois é mais um incidente desencadeante. O filme do diretor e roteirista, Takashi Yamazaki, se assemelha mais em tema e estilo às produções de Akira Kurosawa ou Hayao Miyazaki (influências que ele mesmo reconheceu como cruciais para Godzilla Minus One).

A sociedade antes do indivíduo?

Yamazaki faz uma desconstrução da culpa de Shikishima e, no processo, coloca um espelho diante da sociedade japonesa. No reflexo, surge o passado imperialista de um Japão que, nas palavras dos próprios personagens do filme, negligenciou e descartou seus cidadãos com uma facilidade espantosa. Uma das questões centrais de Godzilla Minus One é a honra, mas também o condicionamento que a precede. Que tipo de sociedade exige que seus jovens homens descartem suas vidas a bordo de um avião, em nome de um sentido absurdo de honra coletiva e nacionalista, em um país que os julgará como covardes se recusarem?
“Para que viver?” é uma das questões centrais de Godzilla Minus One (Crédito: Sato Company)
Através de Shikishima, o filme questiona esses conceitos de honra e nacionalismo e propõe alternativas por meio de seus outros personagens. Diante de um governo que sacrificou seus cidadãos sem pensar, não é melhor construir e lutar a partir da sociedade civil, armada com ciência, dor e um profundo desejo de viver? A narrativa de Godzilla Minus One sugere que a sociedade pode operar fora dos limites de um governo que foi tímido e indiferente em seus melhores momentos, mas opressor e desdenhoso, em seus piores momentos, em relação a sua própria cidadania e a outras nações. No entanto, é importante ressaltar os valores com os quais questiona a sociedade de seu tempo e seu legado histórico. O filme de Yamazaki propõe deixar para trás esse antiquado sentido de honra nacionalista, no qual a vida do indivíduo só adquire valor ao servir a um propósito maior. A alternativa é melhor, embora também enganosa. Apresentados com a opção de viver e levar nossas próprias vidas, será realmente nossa se for dedicada à coletividade, mesmo que seja para aspirações mais nobres? E é possível, a partir dessa individualidade questionável e quase masoquista, curar uma história em que um algoz militar se tornou uma de suas maiores vítimas coletivas? Difícil dizer. Mas ao transportar sua narrativa para uma década antes da aparição original de seu monstro, Godzilla Minus One consegue ser, pelo menos, uma expiação do que talvez seja um dos piores traumas nacionais. Esta é mais uma contribuição para o complicado legado moderno do Japão, que em Godzilla viu encarnada desde a culpa vítima do pós-guerra até as tentativas de restaurar a autonomia militar da nação asiática por forças políticas de direita. Seja qual for o caso, fica claro que Gojira é o ícone pop que melhor encapsula as ansiedades sociais, culturais e políticas do Japão. As formas que assumirá, e se ressurgirá das profundezas – ou permanecerá nelas – são coisas que só podem ser determinadas no arquipélago oriental.

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Lalo Ortega

Lalo Ortega é crítico e jornalista de cinema, mestre em Arte Cinematográfica pelo Centro de Cultura Casa Lamm e vencedor do 10º Concurso de Crítica Cinematográfica Alfonso Reyes 'Fósforo' no FICUNAM 2020. Já colaborou com publicações como Empire en español, Revista Encuadres, Festival Internacional de Cinema de Los Cabos, CLAPPER, Sector Cine e Paréntesis.com, entre outros. Hoje, é editor chefe do Filmelier.

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Lalo Ortega

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