Crítica de 'Guerra Civil': Narciso Americano
Alex Garland entrega em 'Guerra Civil' uma distopia cujo espetáculo contradiz suas intenções
É curioso que o cineasta Alex Garland (Ex Machina, Aniquilação) fale sobre seu novo filme, Guerra Civil (Civil War) - nos cinemas brasileiros em 18 de abril - em termos de cinema antibélico. A razão? Porque tem surpreendentemente pouco a dizer sobre a guerra em si.
Em grande parte, a promoção do filme destacou mais seu pano de fundo político. Garland - roteirista e diretor - nos apresenta um futuro próximo e distópico, no qual os Estados Unidos estão tão politicamente polarizados sob um regime corrupto e autoritário que caíram em uma violenta guerra civil entre várias facções (não é preciso falar sobre o oportunismo do lançamento, em pleno ano eleitoral para o país).
Enquanto isso, do lado da guerra, o apelo reside no fato de que, após sua primeira guerra civil no século XIX (e a invasão a Pearl Harbor, tema à parte), os americanos não sofreram um conflito armado em seu próprio território.
A guerra, para eles, tem existido como uma paradoxalmente arraigada em sua identidade - reforçada e até idealizada pelo cinema -, mas sempre travada em terras estrangeiras e distantes: Vietnã (Apocalypse Now) ou Iraque (Guerra ao Terror). Como é a guerra moderna em casa e o que poderia desencadear tal catástrofe?
Guerra Civil consegue transformar o conflito em espetáculo de uma forma impactante e até arrepiante na tela do cinema. Mas dificilmente poderia ser considerado antibélico, porque realmente não é um filme sobre guerra. É um filme sobre o papel que os meios de comunicação e o jornalismo desempenham em meio a um conflito armado, e levanta mais questões por esse lado.
Sobre Fotografia
"Através da fotografia (...) estabelecemos uma relação de consumo com os eventos, tanto os que fazem parte de nossa experiência quanto os outros, e essa distinção entre ambos os tipos de experiência é obscurecida precisamente pelos hábitos inculcados pelo consumismo."
Susan Sontag, Sobre Fotografia, 1977
Vamos começar com o fato de que os protagonistas de Guerra Civil não são militares nem rebeldes, mas jornalistas e fotógrafos. Temos Joel (Wagner Moura, Narcos), um jornalista que se une à renomada fotógrafa Lee Smith (Kirsten Dunst, Ataque dos Cães) para empreender a perigosa viagem de carro para Washington, D.C., na esperança de entrevistar o presidente entrincheirado (Nick Offerman, The Last of Us). Eles são acompanhados na viagem pelo veterano jornalista Sammy (Stephen McKinley Henderson, Duna) e a jovem Jessie (Cailee Spaeny, de Priscilla), que aspira ser uma fotógrafa de guerra profissional.
Também é interessante o fato de Garland estruturar seu roteiro como um road movie, talvez o gênero cinematográfico mais americano depois do western. E como todo road movie, deve ser um retrato em grandes pinceladas da realidade contemporânea.
Se Easy Rider foi um olhar retrospectivo para o fracasso da contracultura dos anos 60, aqui o diretor olha para um futuro hipotético, teoricamente próximo mas plausível, onde a polarização interna trouxe as mesmas consequências que os Estados Unidos exportaram para outros cantos do mundo. Garland propõe, através do personagem de Kirsten Dunst, uma pergunta existencial sobre o jornalismo: "Cada vez que sobrevivia a uma zona de guerra, eu acreditava que estava enviando um aviso para casa: 'não façam isso'", lamenta ela em uma cena. "Mas aqui estamos nós".
Poderia-se pensar que o grupo de jornalistas embarca na viagem rodoviária mais ruim do mundo, como se alguma verdade estivesse esperando em Oz, no final de um caminho amarelo coberto de cadáveres, sangue e inúmeras famílias deslocadas. Mas não: o trabalho jornalístico - de acordo com nossos personagens - não é refletir, mas comunicar para que outros reflitam.
Na teoria jornalística, o mestre que os jornalistas servem é "a verdade", um ideal abstrato que, depois de filtrado por inevitáveis viés ideológicos, se traduz em "a notícia", o evento do momento. Em Guerra Civil, pode-se pensar que é assim: nossos heróis correm contra o tempo para conseguir uma declaração do presidente antes de sua iminente captura.
Mas a forma como Garland os escreve e filma denota outras intenções. O personagem de Wagner Moura, por exemplo, parece exercer o jornalismo quase por esporte, em busca da próxima emoção. O de McKinley Henderson parece estar em uma via crucis, o jornalista veterano perseguindo a notícia de sua vida, em parte pelo dever de informar, em parte para coroar uma carreira desacelerada pela velhice.
Spaeny é o substituto da audiência em Guerra Civil, uma Dorothy destinada a ver a inocência de seu olhar fotográfico corrompido pelas verdades da crueldade e violência. É ela quem atravessa o caminho da nobre vocação jornalística para a fome de alimentar a besta informativa. Através dela, surgem perguntas sobre o propósito do jornalismo de guerra em si. De que adianta o aviso das imagens mais brutais, calculadas para capturar o momento preciso da morte, se já é tarde demais para a reflexão?
Guerra Civil: onanismo apocalíptico e distopia pictórica
Não é difícil simpatizar com nossos personagens, que enfrentam riscos apenas superados pelos das próprias forças armadas, para conseguir uma declaração ou uma imagem. Mas em tal distopia, seria um suicídio quase inútil: o jornalismo apenas contribui para a máquina do caos informativo, onde a compulsão por consumir imagens dos eventos supera qualquer propósito - nobre ou não - de quem as cria. Embora Garland também não nos mostre esses consumidores de informação. Talvez esse seja o ponto.
“A guerra e a fotografia agora parecem inseparáveis”, escreveu Sontag na década de 1970, quando as fotografias ainda eram feitas em película, como fazem as fotógrafas de Guerra Civil. “Uma sociedade que impõe como norma a aspiração a nunca viver privações, fracassos, angústias, dor, pânico, e onde a própria morte não é vista como algo natural e inevitável, mas sim como uma calamidade cruel e injusta, cria uma imensa curiosidade sobre esses acontecimentos; e a fotografia satisfaz parcialmente essa curiosidade. A sensação de estar a salvo da calamidade estimula o interesse na contemplação de imagens dolorosas, e essa contemplação supõe e fortalece a sensação de estar a salvo”.
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Se o cinema é herdeiro da fotografia, Guerra Civil se sente menos como uma dissuasão e mais como uma exaltação consumista para um Narciso coletivo fixado diante do espelho, demasiado absorto em sua autodestruição para fazer algo e evitá-la. Qual é o sentido de documentar a brutalidade se, mesmo quando acontece em casa, a incessante máquina informativa nos limita a consumir, esquecer e até negar a realidade?
É a máxima fantasia de onanismo comunitário e apocalíptico: no aspecto técnico, Garland é impecável (e implacável) ao criar uma visceralidade quase repugnante na violência estúpida que transborda da tela e estoura nos alto-falantes. Nesse sentido, é quase pornográfico: não pela pobreza técnica (que não é o caso), mas pela fetichização do que representa.
E no início da jornada, compartilhamos a dor que Spaeny nos transmite com a mais mínima expressão. Sentimos sua repulsa quando confronta a morte sem sentido, até que sua inevitável insensibilização seja percebida quase como uma paródia. Jessie continua seu declínio inexorável, condenada pelas expectativas do jornalismo.
Mas do outro lado da tela, talvez valha a pena parar e tomar distância. Para refletir sobre a guerra em termos antibélicos, é preciso começar por não torná-la uma fantasia, e muito menos um espetáculo.
Guerra Civil estreia em 18 de abril. Compre seus ingressos para assistir nos cinemas.
Lalo Ortega é um crítico mexicano de cinema. Já escreveu para publicações como EMPIRE em español, Cine PREMIERE, La Estatuilla e mais. Hoje, é editor-chefe do Filmelier.
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