‘Charuto de Mel’: Kamir Aïnouz e a história da jovem entre a tradição e a liberdade
No Brasil, logo de cara, a cineasta Kamir Aïnouz pode chamar a atenção ou até mesmo causar certa confusão no público por conta de seu parentesco com Karim Aïnouz, diretor responsável por filmes como ‘A Vida Invisível’ e ‘Madame Satã’. No entanto, apenas compará-la com o cinema de seu irmão é injusto, principalmente após a estreia da de Kamir com ‘Charuto de Mel’, filme que está em cartaz nos cinemas brasileiros desde o último fim de semana.
O longa-metragem, que é apenas o primeiro trabalho de Kamir, mostra que a cineasta tinha muito a dizer e a sentir por meio do cinema. Na história, acompanhamos a jornada de Selma (Zoé Adjani). Metade argelina e metade francesa, ela está também dividida entre a tradição e a modernidade. De um lado, seus pais querem que ela siga o que a cultura argelina manda. Do outro, quer amar e ser amada. Passar pela experiência da adolescência.
“[A ideia] veio de uma visão recorrente que tive, do corpo de uma jovem estendida sobre uma cama. Ela parecia dividida. A primeira ideia que me veio à mente foi que ela estava tão dividida entre suas duas culturas, a francesa e a argelina, que não sabia mais quem ela era”, conta a diretora ao Filmelier. “Qualquer um poderia fazer qualquer coisa com seu corpo, porque ela não poderia possuí-lo. À medida que aprofundava essa visão, percebi que ela não estava tão dividida entre duas culturas, mas dividida entre ser uma mulher livre e sexual e se submeter ao patriarcado”.
Coração de ‘Charuto de Mel‘
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No centro dessa jornada de Selma, dividida entre duas vidas e realidades, ‘Charuto de Mel’ vai acentuando a questão da liberdade sexual da personagem. Com a história ambientada em plenos anos 1990, há um florescer do desejo e do fato de ser desejada. No entanto, nem tudo vai por caminhos esperados por Selma: em um dos momentos mais fortes do cinema em 2021, a protagonista é abusada sexualmente por um homem. A cena choca, principalmente, pela naturalidade que acontece na tela. “[A cena foi gravada] tão rapidamente. Tudo tão terrivelmente rápido. Como no abuso na vida real, na verdade. Então eu cortei a cena. Todos no set se entreolharam em silêncio. Nós apenas pensamos ‘uau’. Isso foi absolutamente assustador. A primeira tomada foi a única”, conta Kamir, ao ser questionada sobre a força daquela cena, tão distinta, forte, única. “Não é apenas importante falar sobre abuso sexual. Acho vital que homens e mulheres sintam como é cair nas garras de um predador. Isso abre um diálogo sobre o abuso. O ponto de vista dos sobreviventes de abusos há muito foi silenciado à força. O silêncio é controle”, diz. “Possuir nossa narrativa é fortalecedor e muda o equilíbrio de poder. Isso corta a dominação pela raiz porque abusadores agora sabem que serão expostos”. Há, também, certa melancolia nesse acontecimento ao fazer paralelos. Afinal, ‘Charuto de Mel’ ocorre nos anos 1990. Será que tão pouco mudou? “Algumas coisas mudaram. Como disse, crimes sexuais não são mais cometidos em silêncio, essa é uma grande evolução para a humanidade. No entanto, sim, o patriarcado ainda está vivo e bem, pois o poder financeiro ainda está em grande parte nas mãos de homens brancos mais velhos”, diz Kamir. “Acho que essa dinâmica está mudando rapidamente com a educação, motivação e uma crescente consciência da injustiça de um sistema que prende homens e mulheres em funções atribuídas”.
Após ‘Charuto de Mel’
O longa-metragem de estreia de Kamir, assim, é daquelas pérolas escondidas, quase silenciosas, mas que chamam a atenção. Poucos diretores começam tão bem assim. Será de família? Segundo a diretora, o irmão acompanhou todo o processo de criação e desenvolvimento de ‘Charuto de Mel’, assim como ela também está presente na obra de Karim. “Lemos os roteiros uns dos outros e participamos do processo de edição uns dos outros. O feedback dele é essencial para mim porque é gentil, informado e exigente. Somos diferentes tipos de contadores de histórias, mas nos entendemos nitidamente”, comenta a diretora franco-argelina. Por fim, ela conta que novos projetos já estão surgindo. “Tenho vários projetos em minha mente. Um deles se passa no futuro, em um mundo onde a maioria dos homens desapareceu e tribos de mulheres controlam o que resta do mundo. Uma utopia, por assim dizer”, diz. “Estou brincando. Na verdade, é um futuro distópico e tirânico, onde outro tipo de equilíbrio precisa ser alcançado. Tenho outro projeto que se passa no passado, durante a época colonial na Argélia. Em ambos casos gosto de brincar com ideias de dominação e rebelião”, finaliza.
Jornalista especializado em cultura e tecnologia, com seis anos de experiência. Já passou pelo Estadão, UOL, Yahoo e grandes sites, sempre falando de cinema, inovação e tecnologia. Hoje, é editor do Filmelier.