‘Luca’: o verão de uma criança (monstruosa) ‘Luca’: o verão de uma criança (monstruosa)

‘Luca’: o verão de uma criança (monstruosa)

O mais novo filme da Pixar conta uma história amorosa de amizade, aceitação e monstros na Riviera Italiana

Lalo Ortega   |  
16 de junho de 2021 13:01
- Atualizado em 17 de junho de 2021 11:10

Se uma palavra pode resumir ‘Luca‘, a nova produção da Pixar que estreia no Disney+ nesta sexta (19), é “verão”. E não porque a sua estreia coincida precisamente com a chegada da estação, no hemisfério norte, mas pela própria essência do filme. A tela transborda com o sol e o azul brilhante do mar, enquanto as crianças andam de bicicleta e jogam futebol em uma pequena cidade na Riviera italiana.

A animação, na verdade, é um projeto surpreendentemente pessoal, vindo do estúdio que, anteriormente, nos trouxe aventuras com brinquedos, passeios de balão transcontinentais, corridas de carros antropomórficos e robôs fofinhos em uma odisseia no espaço. ‘Luca’ é, antes de tudo, produto das memórias de infância de seu diretor, o italiano Enrico Casarosa.

“Tive a sorte de crescer em Gênova, uma cidade portuária na Riviera Italiana”, diz Casarosa, que participou de entrevista coletiva com a presença de outros envolvidos na produção, realizada na última semana e com a participação do Filmelier. “É uma costa muito específica porque é muito íngreme, as montanhas nascem do oceano. As cidades estão congeladas no tempo”.

Este é o primeiro longa-metragem de Casarosa, depois de uma longa carreira na Pixar como artista de storyboard e diretor do curta ‘La luna’.

Luca, de Pixar
Luca e Alberto, monstros marinhos incógnitos na cidade costeira de Portorosso (Imagem: Reprodução/ Disney)

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‘Luca’ não se passa em uma cidade real na colorida costa italiana, mas em uma localização fictícia que captura a essência de cidades como Manerola, Monterosso ou a própria Gênova: Portorosso. É aqui que o protagonista Luca Paguro (voz de Jacob Tremblay no inglês) compartilha suas aventuras com seu novo amigo, Alberto Scorfano (Jack Dylan Grazer), baseado também nas lembranças do diretor.

“Eu era um menino tímido, um pouco superprotegido pela minha família”, explica Casarosa. “E quando conheci meu melhor amigo aos 11 anos, meu mundo se abriu. Ele sempre se metia em problemas, não tinha muita supervisão.”

“Nesses verões memoráveis, quando você está crescendo e se descobrindo, eu o seguia e ele me colocava em apuros”, compartilha o diretor. “Isso me fez pensar sobre o quanto nos encontramos em nossas amizades, ou como elas nos ajudam a descobrir quem queremos ser.”

É uma mudança ressoante de ritmo, quase mundano demais, para o estúdio de animação que no ano passado entregou um filme sobre uma alma separada de seu corpo e sua jornada existencial para recuperá-la. Mas logicamente, há uma sacada: Luca e Alberto não são crianças comuns, mas o que em Portorosso chamam de “monstri marini”, ou monstros marinhos, capazes de assumir a aparência humana na superfície.

“Silenzio, Bruno!”: a infância como um monstro marinho

O que é um monstro? No cinema, a presença desses personagens nos coloca quase que imediatamente nos gêneros de terror e fantasia. Seu caráter sobrenatural os torna arquétipos do medo do desconhecido, do exótico, do outro.

O crítico Steven Schneider e o produtor Jonathan Penner escrevem em seu livro ‘Horror Cinema’ (sem edição em português, 2008) que os filmes de monstros carregam, por padrão, um espírito discriminatório em relação ao diferente. Este exotismo representa o choque entre o mundo “civilizado” e uma natureza hostil.

Quando tratamos de seres aquáticos humanoides, o cinema já tem um histórico. A referência obrigatória é ‘O Monstro da Lagoa Negra’ (1954), que acompanha uma expedição de exploradores confrontando a criatura do título, que simplesmente responde à invasão de seu ambiente.

Existem representações ainda mais recentes do monstro, como ‘A Forma da Água‘ (2017), a conto fantasioso dirigido por Guillermo del Toro. Nele, a criatura não é mais a força antagônica, mas um ser incompreendido pelo qual a protagonista simpatiza, por sua vez uma mulher excluída por quase todos em decorrência de sua surdez.

No entanto, o monstro ainda mantém sua condição marginal: ele continua a ser uma entidade que os humanos procuram capturar e subjugar.

The Shape of Water-The Asset by GiuseppeDiRosso | The shape of water, Scary mermaid, Creature design
Doug Jones como a criatura marinha em ‘A Forma da Água’ (Foto: divulgação/20th Century Studios)

Com um propósito evidentemente mais inocente, a dinâmica é invertida com os monstros marinhos de ‘Luca’ – parcialmente inspirados no folclore medieval e nas esculturas populares italianas. A história é contada por meio de seu protagonista, uma criança do mar que é proibida pelos pais de ir à superfície, onde vivem os humanos.

Mas a curiosidade inevitavelmente o domina. “Quando conhecemos [Luca], ele começa a sentir que seu mundo é pequeno demais para ele”, diz o diretor. “Ele começa a seguir seus instintos um pouco, para se aventurar mais longe de seu mundo subaquático.”

Sua eventual fuga para o mundo terrestre é o que desencadeia suas aventuras com Alberto, mas não demora muito para seus pais irem atrás dele. Maya Rudolph, que interpreta Daniela, a mãe de Luca, explica: “Ela está realmente protegendo ele do que ela imagina ser perigoso no mundo.”

“Há um grande mal-entendido entre humanos e monstros marinhos”, diz Jacob Tremblay. “Eles temem um ao outro. Os monstros marinhos evitam estritamente a superfície, e os humanos querem caçar monstros marinhos para provar que existem.”

Los monstruos en Luca, de Pixar
Alberto – que tem o mesmo nome do melhor amigo de infância do diretor – é quem inspira o protagonista a sair da zona de conforto (Imagem: divulgação/Disney)

A dinâmica do medo de monstros – e de ser algo diferente – também está presente neste filme da Pixar. Não é um assunto particularmente novo para o estúdio – existem os monstros bons e protagonistas em ‘Monstros S.A.‘ – mas o diretor o leva para um terreno diferente em ‘Luca’.

“Monstros marinhos são realmente uma metáfora para o que é se sentir diferente ou excluído”, afirma Casarosa. Quando Luca e Alberto conhecem Giulia (com voz original da atriz estreante Emma Berman), uma garota desajustada em sua própria cidade, esse sentimento começa a confundir as fronteiras entre eles e os humanos.

Embora o segredo dos amigos continue sendo uma fonte de tensão e risco, o filme se torna uma simples história de amizade e autodescoberta no verão, com o trio de crianças se unindo para derrotar o valentão da cidade em uma corrida.

“A amizade deles revela o melhor de Luca e lhe dá confiança para abrir as asas e correr mais riscos”, compartilha o produtor executivo Kiri Hart. “É uma história absolutamente doce e calorosa sobre amizade e como nossos amigos podem desvendar certas partes de nós e nos dar a chance de descobrir algo sobre nós mesmos.”

Luca: o verão incomum da Pixar

“Há um tema muito afável sobre querer fazer parte de algo além de nossa família, querer vivenciar culturas diferentes da nossa”, acrescenta Casarosa. “Luca descobre o poder de explorar e celebrar outra cultura, enquanto aprende a honrar e compartilhar a sua própria.”

Essa curiosidade influenciou o design do personagem. “Ele tem olhos enormes e redondos”, diz o supervisor de animação Michael Venturini. “São olhos muito expressivos, absorvem o mundo”.

Por extensão, a personalidade dele influenciou a direção artística do resto do filme. “É uma história contada a partir de uma perspectiva infantil, por isso foi importante refletir isso no design do personagem”, explica a diretora de arte Deanna Marsigliese. “Você notará muitas formas fortes e energéticas com proporções muito engraçadas.”

Tudo isso contribui para que este seja uma das animações mais expressivas visualmente, simplificadas e distintas da filmografia da Pixar, enraizado nas próprias sensibilidades de Casarosa. Entre suas influências, o diretor destaca animes, aquarelas e gravuras japonesas.

El diseño de personajes en Luca, de Pixar
“Luca é um círculo com enormes olhos curiosos”, diz a designer de arte Deanna Marsigliese. “Alberto é um feijão com boca hiperativa. Giulia é um triângulo flamejante, de nariz pontudo” (Imagem: divulgação/Disney).

Por outro lado, a produção de Luca também foi inusitada para o estudo em outro sentido: a logística necessária devido à pandemia da covid-19. “Luca exigia uma nova abordagem de gravação”, explica a produtora Andrea Warren. “Foi uma experiência incrível, mas às vezes estranha. Gravamos todos de suas casas – e às vezes, de seus armários ”.

A própria pandemia também trouxe mudanças à estratégia de estreia da Disney. O filme transborda com um espírito de verão que inspira “sair e andar de Vespa na Itália”, como diz Jacob Tremblay.

Mas, apesar disso, ‘Luca’ será lançado no Disney+ sem o custo adicional de Premier Access, assim como ‘Soul‘, em um caso notavelmente contrário ao de outra animação da Disney: ‘Raya e o Último Dragão‘.

Apesar de relatos de conflitos entre a Disney e a Pixar sobre a estratégia de lançamento, o estúdio não comentou o assunto. No entanto, em casos anteriores, o CEO da Disney, Bob Chapek, observou que a empresa está “tentando monitorar se os consumidores estão dispostos a voltar aos cinemas”. Nessa avaliação em constante mudança, o verão da Pixar terá que acontecer nas telas de casa.

‘Luca’ estreia exclusivamente na Disney+ nesta sexta, 18. Enquanto espera, você pode assistir ao trailer abaixo:

Publicado originalmente na edição mexicana do Filmelier News.