Crítica de ‘O Homem dos Sonhos’: manual de autodestruição Crítica de ‘O Homem dos Sonhos’: manual de autodestruição

Crítica de ‘O Homem dos Sonhos’: manual de autodestruição

Com um contido Nicolas Cage, ‘O Homem dos Sonhos’ é uma ácida desconstrução da fama e seu lado mais desagradável

Lalo Ortega   |  
17 de maio de 2024 09:11

Tardei um pouco em perceber que O Homem dos Sonhos (Dream Scenario) – que chega nas plataformas de streaming brasileiras na segunda, 20– era também um filme do cineasta norueguês Kristoffer Borgli, responsável pelo inclassificável falso documentário Drib e a fenomenal sátira com tons de horror corporal, Doente de Mim Mesma.

Com esse fato em mente, até poderíamos dizer que, com seus três longas dirigidos até agora, Borgli criou uma trilogia cáustica sobre a necessidade quase compulsiva da humanidade pós-moderna por obter atenção. O cineasta retrata sociedades que valorizam o mérito e a fama a todo custo, cuja busca, levada às últimas consequências, pode ser tão idiota quanto aterrorizante.

Publicidade

O interessante de O Homem dos Sonhos é que Borgli abandona as celebridades das redes sociais e narcisistas patológicos de seus filmes anteriores, em favor de uma história protagonizada por seu extremo oposto. É o que parece ser na superfície, pelo menos.

A (questionável) arte de viver como uma zebra

O Homem dos Sonhos é a história de Paul Matthews (Nicolas Cage, mantendo seu segundo fôlego), que não poderia ser um homem mais distinto dos outros protagonistas de Borgli. É um professor de biologia com uma personalidade cinzenta, uma atitude passiva perante a vida, frustrado em suas aspirações. Quer (ou assim diz) escrever um livro, mas mal tem o caráter suficiente para se fazer respeitar entre colegas.

No entanto, sua vida e a de sua esposa (Julianne Nicholson) e filhas (Jessica Clement e Lily Bird) dão uma reviravolta radical quando, do nada e sem explicação racional alguma, Paul começa a aparecer nos sonhos de milhões de pessoas no mundo, sem tê-las conhecido ou ter sido visto por elas jamais.

O Homem dos Sonhos, deve-se advertir, não se inquietará em oferecer explicações para seu fenômeno detonante, pois seu objetivo é outro. Paul poderia não parecer o típico protagonista de Borgli, mas se torna um ao menor estímulo: outrora reprimido e passivo, abraça sua viralidade onírica e aceita ser objeto de artigos na internet, entrevistas na TV, fotos com seus alunos, e até a se reunir com uma agência de publicidade que já tem tudo planejado para capitalizar sua fama. O pacote completo para a celebridade total e efêmera de nossos dias.

Leia também: Crítica de ‘Amigos Imaginários’: alegria e fugas mentais

A indústria da mídia é rápida em tentar explorar o protagonista de O Homem dos Sonhos (Crédito: Califórnia Filmes)

Tudo parece ir bem, até que deixa de estar. Inexplicavelmente, o passivo Paul dos sonhos torna-se violento, desencadeando uma pandemia de pesadelos aterrorizantes que, naturalmente, engendra um pânico coletivo – mundial – em relação à sua pessoa na realidade.

O propósito da pele das zebras, argumenta Paul em uma de suas aulas no início do filme, não é camuflar o indivíduo no ambiente, mas na massa do rebanho. Se uma zebra se atreve a levantar a cabeça, destacará e se tornará alvo do predador.

O cenário que nos pinta O Homem dos Sonhos, no entanto, é um no qual o protagonista não só levanta a cabeça, mas abandona o rebanho de maneira tão radical, extrema – e involuntária – que é submetido a um nível de atenção sem precedentes. Borgli parte daqui para lançar luz não só sobre a psique de seu personagem, mas também para comentar sobre o estado de nossa cultura midiática.

Os paradoxos da passividade e da responsabilidade

Talvez o grande paradoxo do protagonista de O Homem dos Sonhos seja a natureza de sua fama e sua atitude em relação a ela. Embora a deseje internamente, não a busca ativamente. Quando chega até ele e a abraça, perde todo o controle sobre o que acontece depois.

Ele mesmo, pode-se argumentar, não é responsável por exercer a violência onírica que se desencadeia, mas também não toma cartas no assunto quando o fenômeno começa a afetar sua vida e a de sua família. Sua passividade – e indisposição para mudá-la – é a receita perfeita para sua autodestruição.

E mais além de aprofundar na explicação do fenômeno no filme (uma forma extrema de inconsciente coletivo junguiano), Borgli parte do mesmo para comentar sobre temas como a cultura do cancelamento e da apropriação, exploração e consumo da imagem nos meios de comunicação digitais.

No mundo de O Homem dos Sonhos – como no nosso, hoje mesmo – uma pessoa passa a ser mercadoria de consumo no momento em que é captada por uma câmera que gera fotos ou vídeos. Torna-se um meme alienado, reproduzido ad infinitum na internet, trocado incontáveis vezes por WhatsApp até chamar atenção suficiente para poder ser explorado comercialmente, e eventualmente descartado ao concluir sua efêmera “vida útil”. Seja por via do chamado cancelamento, ou porque simplesmente nos entediamos dele.

O Homem dos Sonhos explora os riscos da fama em nossa atual cultura de mídia (Crédito: Califórnia Filmes)
O Homem dos Sonhos explora os riscos da fama em nossa atual cultura de mídia (Crédito: Califórnia Filmes)

Afinal, as de Borgli são distopias contemporâneas: não é necessário falar de um “futuro não muito distante”, quando já as vivemos agora. Desde Amir Asgharnejad em Drib a Signe (Kristine Kujath Thorp) em Doente de Mim Mesma e, até certo ponto, Paul em O Homem dos Sonhos; estamos diante de protagonistas ansiosos por entregar sua dignidade e humanidade em troca dos cinco minutos de fama no infinito universo de telas, que lhes trará a desejada ilusão de aceitação.

Todos eles perdem o controle: de sua imagem, de sua reputação, de suas identidades. Quem é responsável pelo que acontece depois, quando já nem sequer se pertencem a si mesmos? Talvez tenhamos que apontar ao pobre infeliz que se mete nos sonhos das pessoas sem querer. Ou será culpa dos sonhadores têm a responsabilidade sobre o que sonham? Ou, talvez, também devemos olhar para as indústrias que constroem nossos imaginários, e que pretendem nos dizer o que pensar, o que consumir e o que sonhar.

Quando menos, cabe pensar que a razão pela qual não colocaram publicidade em nossos sonhos, é porque ainda não encontraram a maneira.

O Homem dos Sonhos chega nas plataformas em 20 de maio. Confira onde assistir.

Play Surpresa do Filmelier permite assistir a filmes grátis completos

Siga o Filmelier no FacebookTwitterInstagram e TikTok.