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‘Persuasão’, da Netflix, transforma obra de Jane Austen em comédia cringe

Nem a melhor direção de fotografia poderia ter evitado essa tragédia. ‘Persuasão‘, adaptação da obra de mesmo nome de Jane Austen – cânone da literatura mundial -, estreou na Netflix na última sexta-feira, 15, e, embora as expectativas estivessem altas para vermos Dakota Johnson (‘50 Tons de Cinza‘) encarnar a heroína Anne Elliot, o resultado final é uma comédia entediante e dolorosamente cringe – palavra em inglês que se popularizou na internet e significa algo “vergonhoso” para os mais jovens.

Comercialmente, existe uma tendência em transformar produções de época em algo mais moderno e badalado. Já vimos tal aspecto ser extremamente bem sucedido dentro da própria gigante do streaming com ‘Enola Holmes‘ (2020) e, especialmente, com a série ‘Bridgerton’ (2020).

Dessa forma, é nítido que o problema não está em atualizar uma narrativa para que ela converse melhor com o público. O empecilho é quando essas mudanças esvaziam toda uma perspicácia e genialidade para ter como produto final uma espécie de dramédia millennial.
Dakota Johnson é a protagonista de ‘Persuasão’ (Crédito: Divulgação/Netflix)

‘Persuasão’ é um ‘Fleabag’ que deu errado

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Há quem diga que um dos maiores problemas da adaptação de ‘Persuasão’ é a constante (e, neste caso, embaraçosa) quebra da quarta parede, recurso escolhido pela diretora Carrie Cracknell. A técnica, quando utilizada com maestria, nos entrega produções com roteiros admiráveis como ‘Fleabag’ ou ‘House of Cards’. Porém, quando usada sem sagacidade, o pacto sagrado com o espectador é automaticamente rompido, e aí não tem mais volta. Ainda que Dakota Johnson – talentosa o bastante para já ter provado o seu potencial em filmes ótimos como ‘Cha Cha Real Smooth: O Próximo Passo‘ e ‘A Filha Perdida‘ – faça o possível com o que tem em mãos, a narrativa perde a oportunidade de alfinetar a aristocracia inglesa (o cerne do livro de Austen) ou, até mesmo, se utilizar do anacronismo (aparentemente inevitável) para colocar sob os holofotes gargalos contemporâneos. Ao menos seguindo o esqueleto da história original, a trama do filme gira em volta de Anne Elliot, integrante de uma família petulante e em decadência, que é persuadida a não se casar com seu amado Capitão Wentworth (Cosmo Jarvis) pelo fato dele ser um homem sem fortuna. Oito anos mais tarde, ele volta à cidade endinheirado e cheio de títulos, e Anne, que nunca superou a paixão, percebe que as convenções sociais que a pressionaram a dispensá-lo são, na verdade, tolas.
Capitão Wentworth (Cosmo Jarvis) é o interesse amoroso da heroína Anne Elliot (Crédito: Divulgação/Netflix)

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Sem muito carisma e com penteados e maquiagens que combinam mais com as pastas do Pinterest do que com os anos 1800, ‘Persuasão’ ainda comete outros erros. Na tentativa de trazer um ar de diversidade para o longa, que é (ou deveria ser) ambientado em plena sociedade estratificada, classicista e preconceituosa da Era Vitoriana, retrata atores brancos e negros em nível de igualdade, sem desenvolver uma linha de acontecimentos históricos diferentes, como faz ‘Bridgerton’. Por mais que a iniciativa dos chamados “color-blind casting” (escalação cega para cores, em tradução livre), tenha trazido um avanço genuíno em Hollywood, este é um debate mais complexo. Isso porque, sem a devida cautela, alguns filmes acreditam que simplesmente pela razão de existir essa pluralidade no elenco, não é mais necessário aprofundar os personagens negros e suas respectivas linhas narrativas. Em alguns casos, o roteiro acaba acreditando que já fez sua parte e remove quaisquer discussões adicionais sobre o racismo, além de permitir um apagamento histórico relevante a toda uma cultura. Ainda é necessário muita reflexão no audiovisual. ‘Persuasão’ também muda inúmeras nuances do livro, mas a modificação mais torturante é a cena da carta de amor, que tranforma um dos momentos mais românticos escritos por Jane Austen em uma situação desprendida de qualquer força emocional.

“Não posso mais ouvir em silêncio. (…)
Você partiu minha alma.
Sou metade agonia,
metade esperança.”

Trecho da carta de Frederick Wentwort no livro
‘Persuasão’ (1816), de Jane Austen
Tendo citado alguns dos gigantes deslizes do filme, é preciso dizer que ‘Persuasão’ da Netflix ao menos tenta trazer à tona algumas discussões sobre o papel da mulher. No entanto, à esta altura, não preciso nem comentar que a intenção era melhor no papel, já que na tela a conclusão se dá apenas na superfície. No fim, o filme é apenas uma releitura, confusa e com salpicadas de “girl power”, de um clássico atemporal e fica impossível não lembrar do que já nos foi entregue anteriormente: a química inigualável de Keira Knightley e Matthew Macfadyen em ‘Orgulho e Preconceito‘, de 2005; ou até mesmo o roteiro bem costurado de ‘Emma‘ (2020), com Anya Taylor-Joy, que embora não dialogue com todas as audiências, preserva muito bem a essência das heroínas “austeanas”. Diferente dos sentimentos de Wentworth, ‘Persuasão’ não representa nenhuma esperança no que diz respeito às adaptações dos clássicos, pelo contrário, é apenas agonia. Às vezes, era melhor terem deixado a Jane Austen em paz.

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Laura Ferrazzano

Jornalista cultural e entusiasta das artes. Já fez parte da redação de grandes sites brasileiros como R7 e CARAS digital, além do portal internacional, Her Campus. Foi assistente de redação no Filmelier.

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