Universal e AMC: negócio histórico ou apenas o canto do cisne do cinema? Universal e AMC: negócio histórico ou apenas o canto do cisne do cinema?

Universal e AMC: negócio histórico ou apenas o canto do cisne do cinema?

Omarson Costa, executivo com passagem por grandes empresas do setor de streaming e telecomunicações, analisa o futuro do cinema após o acordo

Omarson Costa

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4 de agosto de 2020 11:53

Alguns amigos me pediram para opinar sobre o recente acordo entre a Universal e a AMC.

Nos anos 1990 e início da primeira década do século 21, Nokia e Motorola reinavam no mercado de telefonia móvel. Naquela época, as operadoras determinavam todos os serviços do telefone: qual aplicativo de música, quais os jogos, até os ícones.

Temos 193 países filiados à ONU. Cada um deles com 3 operadoras, em média – em alguns mais, outros menos em determinados períodos. Isto resulta em 579 possibilidades de portfólio de serviços. Ou seja, um mercado altamente fragmentado com as operadoras no controle.

Mercado de telefonia mudou muito desde a chegada dos celulares (Crédito: Flickr/Phil Roeder)

Então nasceram o iOS e o Android e às 579 possibilidades viraram apenas 2. As operadoras perderam o controle da oferta dos serviços aos usuários, abrindo espaço para que desenvolvedores criassem serviços e assinaturas (Uber, Spotify, Deezer, Netflix, etc.).

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Quando o mercado era fragmentado, não havia estimativas de seu tamanho. Após a consolidação, a Statista aponta um mercado de US$ 54 bilhões, quantia antes inclusa nas faturas das operadoras e que agora foi transferida para os cartões (crédito e débito) cadastrados nas lojas de aplicativos. Mas essa estimativa pode ser subdimensionada, uma vez que especialistas situam só o valor movimentado pelo streaming entre US$ 30 bilhões e US$ 70 bilhões.

A operadora perdeu o poder sobre os serviços e os ecossistemas, assumidos pelos desenvolvedores do iOS e do Android.

Janela de distribuição do cinema

Você pode perguntar, mas o que isto tem a ver com o acordo entre a Universal e a AMC ?

O modelo da indústria do cinema é basicamente o mesmo desde sua invenção em 1895 pelos irmãos Lumière em Paris. Pessoas pagam ingressos e assistem filmes em salas de cinema. Um hábito de 125 anos que perpassou e encantou muitas gerações.

Salas de cinema passaram por mudanças na pandemia (Crédito: Flickr/ben ko)

E lá vou eu de novo com a matemática. Quantas telas de cinemas existem no mundo? De novo a Statista nos socorre: eram 195.282 salas em 2019. Dessas, 1.000 pertencem à AMC, maior cadeia exibidora do mundo. Levando em conta os multiplexes, são 11 mil telas ou slots de exibição de filmes!

Historicamente, as salas possuem um período de três meses de exclusividade para exibir os filmes. As operadoras, nos anos 2000, tinham exclusividade de certos aparelhos por um período. A AT&T, por exemplo, foi a primeira operadora do mundo a distribuir o iPhone com exclusividade.

Um longa metragem comercial percorre o seguinte caminho desde o seu lançamento: salas de cinema, BOX de DVD, TV paga, TV aberta, DVD de 9,90 no varejo.

Pelo acordo celebrado, a Universal dá à AMC 17 dias de exclusividade desde o lançamento. Findo esse prazo, a Universal poderá lançar em streaming no formato de PVOD (Premium VOD). Em outras palavras, o filme chega a sua sala de estar pouco mais de uma quinzena depois de entrar em cartaz.

Comportamento do público

Algumas pessoas continuarão seguindo o hábito centenário de ir ao cinema. Outras, vão esperar para assistir ao filme no conforto de suas casas, sem os gastos adicionais com transporte, estacionamento, comida e – desde março – o risco de ser contaminado pela Covid-19.

Público está encontrando novas formas de assistir a filmes (Crédito: Divulgação/Netflix)

O valor que os espectadores caseiros vão pagar pelo acesso ao filme em PVOD, a Universal irá dividir com a AMC como forma de compensação pela renúncia precoce de receitas.

Parece engenhoso. Mas e se a Covid-19 afugentar mais público de cinema que o previsto? E o que acontecerá com este acordo em 10, em 20 ou daqui a 125 anos?

Aparentemente, pouco importa. Todos os negócios hoje são medidos em trimestres e os bônus dos executivos também. Neste momento faz sentido para ambos os lados.

Mercado

No dia do anúncio (28 de julho de 2020) as ações da AMC abriram valendo US$ 3,85 e fecharam o dia a US$ 4,15, uma alta de aproximadamente 7,79% em um dia. Em 29 de julho, a cotação iniciou o pregão em US$ 3,95 (caiu no ‘after hour’) e recuperou-se no final, encerrando em US$ 4,16.

Esses dados fazem acender uma luz amarela. Por que as ações não dispararam se, a partir de agora, a AMC passa a ter acesso a um mercado entre US$ 30 a US$ 70 bilhões (aplicativos e/ou streaming)?

Porque os mercados de uma forma geral lucram no curto prazo e miram no futuro. Ou seja, o trimestre define o bônus dos executivos e o lucro do acionista. Mas, para uma ação subir de patamar, a “expectativa” tem de projetar crescimento no longo prazo.

Mercado não reagiu como esperado ao acordo entre Universal e AMC (Crédito: Flickr/Rafael Matsunaga)

A título de referência, o cume da ação da AMC foi de US$ 35,68 em 20 de março de 2015. Quem aplicou uma nota de US$ 10 naquele dia teria hoje na mão um troco de US$ 1,17 – perda de 88%!

Seguindo esse raciocínio, faça as seguintes perguntas:

a) Nos próximos trimestres a AMC poderá aumentar suas receitas? Provavelmente sim. Ajudará um pouco a compensar as perdas de bilheteria;

b.) Em 10, 20 ou 125 anos… as pessoas continuarão indo no cinema e gastando cada vez mais? A falta de empolgação do mercado hoje indica que a resposta é provavelmente não.

Então o mercado reagiu da forma esperada. Melhorou a perspectiva de curto prazo, acreditando em resultados melhores, mas continua desconfiado com relação ao “futuro do cinema”. Provavelmente, a AMC não voltará mais aos valores de 20 de março de 2015.

Império dos cinemas

Publiquei em meu blog em 24 de agosto de 2016 um artigo intitulado “Por que você (não) irá trocar de operadora de celular?”. Nele, contei a história de Frederic Tudor que, no início do século 19, criou uma empresa de extração de gelo na Noruega que era exportado para todas as partes do mundo. Quando a geladeira foi inventada, seu império ruiu.

Penso que no mundo dos negócios, o avanço tecnológico faz funções desaparecerem. Assim como as operadoras já dominaram a distribuição de serviços e não controlam quase nada nos dias de hoje, desde Thomas Edison, em 1900, as distribuidoras de cinema controlaram o lançamento de filmes.

Cinemas precisam entender e se adaptar ao novo momento do mercado (Crédito: Chris Marchant / Flickr)

A partir do momento em que a Netflix se tornou uma empresa global em 6 de janeiro de 2016, um filme passou a poder alcançar toda a sua base crescente de assinantes com acesso à internet. E com o potencial de alcançar cerca de 4 bilhões de pessoas conectadas em uma população total de 7 bilhões.

Em outras palavras, a Netflix lançou a “oportunidade” de 4 bilhões de “salas de cinema” versus as 195.282 salas efetivamente registradas.

Qual seria o valor de mercado da Netflix comparado ao da AMC? Na data de fechamento deste artigo, a dona de 4 bilhões de salas potenciais valia US$ 215 bilhões. A que tem 11 mil telas US$ 432 milhões.

Mais uma vez, embolse o lucro do trimestre, mas observe o longo prazo.

Futuro do cinema

Ninguém sabe como será o cinema daqui a 10, 20 ou 125 anos. Aparentemente, acredita-se que não existirá ou será menor do que é hoje. Talvez a força da experiência da sala de cinema esteja sendo subestimada. Afinal de contas, um hábito não dura 125 anos à toa. Então, estamos aqui fazendo um exercício de especulação.

Posso apenas compartilhar meu ponto de vista (que pode estar errado!). Acredito que o cinema em alguns anos será como o disco de vinil. Seguirá existindo, mas será economicamente insignificante. Apenas para saudosistas da Sétima Arte, como disse Ricciotto Canudo.

O acordo da Universal com a AMC é histórico?

Posso estar equivocado, mas ele me faz pensar na cena do filme ‘Titanic’ em que os violinos seguem tocando no convés partido enquanto os passageiros se jogam no mar gelado. Belo acordo e inevitavelmente irrelevante.

O acordo poderá mudar positivamente as receitas dos cinemas por alguns anos. Mas não evitará sua obsolescência. Assim como as operadoras relutaram em distribuir o iPhone, por “ameaçar” seu controle dos serviços. Alguém lembra dos nomes dos executivos que diziam que o iPhone era “irrelevante”? Pois é! Lembro de alguns.

“Inevitável”, diria Thanos.

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Omarson Costa atua como Conselheiro de Administração, com formação em Análise de Sistemas e Marketing, tem MBA e especialização em Direito em Telecomunicações. Em sua carreira, registra passagens em empresas de telecom, meios de pagamento e Internet.