A história de como a Apple “roubou” da Netflix o 1º Oscar de Melhor Filme do streaming A história de como a Apple “roubou” da Netflix o 1º Oscar de Melhor Filme do streaming

A história de como a Apple “roubou” da Netflix o 1º Oscar de Melhor Filme do streaming

Depois de quase uma década de grandes investimentos na indústria do cinema, Netflix se vê ultrapassada pela Apple na primazia do primeiro Oscar de Melhor Filme para uma plataforma de streaming

28 de março de 2022 12:40

No passado, havia uma linha que separava a televisão do cinema. Por décadas, as duas indústrias coexistiram como universos estanques e paralelos – até o advento do streaming. Disruptiva por natureza, como qualquer startup do Vale do Silício, a Netflix passou a borrar essa linha. Com investimento pesado, começou a mexer no terreno dos grandes estúdios e dos tradicionais distribuidores independentes, enquanto nos fazia questionar o que significa a palavra “cinema”.

Corta para 2022. Em meio a uma pandemia global, que também abalou as bases da indústria, a recém-chegada Apple desbanca a Netflix e leva a joia da coroa da sétima arte de Hollywood e mundial: o Oscar de Melhor Filme.

Ainda que o tapa de Will Smith em Chris Rock tenha roubado todas as atenções durante a cerimônia, podemos dizer que o mundo está um pouco diferente depois do que ocorreu no Dolby Theatre neste 27 de março de 2022 – ou 28 de março, no fuso horário brasileiro.

Ataque dos Cães tinha 10 indicações ao Oscar 2022 e era o favorito na categoria de Melhor Filme, mas não levou (crédito: divulgação / Netflix)
‘Ataque dos Cães’ tinha 12 indicações ao Oscar 2022 e era o favorito na categoria de Melhor Filme, mas não levou (crédito: divulgação / Netflix)

A essa altura, você já sabe que a empresa fundada por Reed Hastings começou entregando DVDs pelo correio, chegou a se oferecer para ser comprada pela Blockbuster e mudou o destino do entretenimento ao lançar o streaming de vídeo, em 2007. De lá pra cá, a Netflix marcou a sua trajetória para ser extremamente agressiva em sua expansão, superando a marca de 220 milhões de assinantes.

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Há diversos motivos para o isso. O mais importante é que a companhia foi pioneira no formato de distribuição via internet e com uma assinatura que (ao menos deveria) custar menos que um livro por mês. Criou-se um circulo virtuoso (ou seria vicioso?) no qual precisa de altos investimentos para manter essa expansão, enquanto os investidores exigem uma expansão cada vez maior para manter os investimentos.

Por esse caminho passou a produção de conteúdo original, hoje extremamente agressiva. Foi, também, quando viram que a temporada de premiações de Hollywood era uma verdadeira mina de ouro para essas ambições.

Afinal, poucas indústrias do mundo criaram um sistema de autopromoção como Hollywood. O Oscar e outras premiações relacionadas são uma máquina muito bem azeitada, se autopromovendo e multiplicando seus próprios dólares. Imagina, então, se uma empresa como a Netflix apontasse o seu grande canhão de marketing para lá?

Foi o que aconteceu.

‘O Irlandês’ é um dos grandes exemplos de como a Netflix usa a tradição do cinema para impulsionar o uso da plataforma (crédito: divulgação / Netflix)

Nos últimos anos, filmes como ‘Roma‘, ‘O Irlandês‘, ‘História de um Casamento‘ e tantos outros com o selo de “original Netflix” pintaram na premiação, cumprindo com esmero esse objetivo e com um grande sonho na cabeça: vencer o Oscar de Melhor Filme.

Acontece que parte desse processo envolve questionar o que é cinema. Na concepção tradicional – e de boa parte da indústria – o cinema é uma experiência. Uma ingresso, uma sala escura, uma tela gigante, imersão total. Porém, para uma empresa que nasceu no Vale do Silício, cinema é um formato, uma linguagem. Importa como você filmou, aspectos técnicos, suas intenções. A tela e a experiência? São quando você quiser, como você quiser.

Com a pandemia, esse processo de mudança de comportamento foi acelerado. A Netflix, com o terreno já cimentado, vem nadando de braçada no Oscar desde o ano passado. Com ‘Ataque dos Cães‘ super elogiado e surfando em temas do momento na sociedade – como diversidade – enquanto apresenta uma qualidade estética e de narrativa impecáveis, parecia que finalmente a empresa de Los Gatos conquistaria a cobiçada joia da coroa.

Parecia.

Entra a Apple

Se engana quem pensa que a arte cinematográfica não está, de alguma forma, no DNA da Apple. Claro, a gigante corporação se tornou famosa por seus Macs e iPhones. Mas Steve Jobs, o fundador da companhia, teve um passado mais amplo do que isso.

Em 1979 a Lucasfilm fundou Graphics Group, a “divisão de computadores” responsável por criar os efeitos especiais computadorizados. Em 1986, a divisão foi separada do resto da companhia com o investimento financeiro de ninguém menos que o próprio Jobs.

Nascia a Pixar.

Em 1995, o estúdio abalou as estruturas do entretenimento ao lançar ‘Toy Story‘, o primeiro filme de animação longa-metragem totalmente feito em computadores. No ano seguinte, o longa foi indicado a três Oscars. Na época, a Academia não premiava o melhor filme animado do ano, mas concedeu uma estatueta especial pelo feito da Pixar.

Steve Jobs teve crédito como produtor executivo em ‘Toy Story’, por isso não recebeu um Oscar para chamar de seu – de qualquer forma, esse foi o ponto alto na (curta) carreira do executivo em Hollywood.

Em parte, o mundo precisa agradecer à Steve Jobs pela existência de 'Toy Story' (crédito: divulgação / Disney Pixar)
Em parte, o mundo precisa agradecer à Steve Jobs pela existência de ‘Toy Story’ (crédito: divulgação / Disney Pixar)

Na última década, já na fase pós-Jobs, a Apple percebeu que precisava expandir o seu ecossistema para além dos computadores e gadgets que produz. Afinal, a marca é – como sempre quis o seu criador – a representação de um estilo de vida. Mais do que isso: trazer serviços e assinaturas são uma forma extremamente efetiva para ampliar as receitas na base de usuários, que já consomem mais em dólares do que quem utiliza os concorrentes.

Se aventurar na produção de conteúdo original e exclusivo foi o passo natural a seguir. Desde 2019, a empresa lança filmes e séries no formato popularizado pela Netflix, mesmo que com foco mais na qualidade do que na quantidade.

Goste ou não de ‘No Ritmo do Coração‘, o longa é um exemplo inequívoco dessa estratégia.

E, sim: por conta desses meandros quase malucos da distribuição, no Brasil o longa está disponível para assistir no Amazon Prime Video. Porém, trata-se originalmente de uma produção da marca da maçã e, nos EUA e em boa parte do mundo, pode ser assistida no Apple TV+.

Netflix x Apple

Diferentemente da Netflix, a Apple – assim como a Amazon – nunca precisou ser agressiva na sua mensagem de disrupção dentro do mundo do entretenimento. O streaming é um produto a mais, um agregado, um (com perdão do trocadilho e da redundância) “plus a mais” para os usuários da marca abrirem ainda mais os seus bolsos.

Isso contribuiu para que a empresa criasse uma imagem amigável dentro da indústria. Até Steven Spielberg, uma das vozes contrárias à estratégia de Hastings e seus colegas, fechou um acordo para a produção de séries com a companhia da maçã, por exemplo.

Ajuda, também, a imagem criada pelo homem que substituiu Jobs no cargo de CEO da Apple: Tim Cook. Visto como uma pessoa mais agradável que seu antecessor, Cook geralmente apoia grandes causas, é mais amigável com talentos e lidera projetos que diminuem o impacto da Apple no meio-ambiente, além de ser abertamente gay. O executivo mais do que dobrou a receita e o lucro da empresa, que passou de US$ 2 trilhões de valor de mercado.

Do lado da Netflix, a estratégia de borrar a linha entre cinema e TV trouxe inimizades. Ainda que tenha se comprometido com o lançamento na tela grande desde ‘O Irlandês’, muitos na indústria não enxergam que a empresa esteja fazendo o necessário para manter a experiência tradicional ainda viva – ou, no mínimo, pegaram ranço. Nesse último caso, é muito difícil contornar essa imagem arranhada.

No Ritmo do Coração pode não ser o melhor filme do Oscar 2022, mas entrega uma mensagem (crédito: divulgação / Diamond Films)
‘No Ritmo do Coração’ pode não ser o melhor filme do Oscar 2022, mas entrega uma mensagem (crédito: divulgação / Diamond Films)

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É aí que entram ‘Ataque dos Cães’ e ‘No Ritmo do Coração’. O longa-metragem de Jane Campion, artisticamente falando, é impecável. A direção (premiada com um Oscar ontem) é uma primazia, assim como a fotografia e as atuações. O roteiro, então, entrega uma história que conta muito mais nas entrelinhas, além de desconstruir a imagem com cowboy machão do meio oeste americano.

Se tivesse sido laçada por uma Searchlight Pictures, Warner Bros. ou Focus Features, teria sido aclamado de pé no Dolby Theatre.

Porém, o ranço com a Netflix se impõe. Muitos integrantes da Academia, que votam na premiação, certamente viram o longa com um pé atrás por ser de onde é, colocando justamente os seus maiores acertos artísticos como deméritos em um mundo onde o Oscar tenta ser mais pop. Resultado: das 12 indicações, ficou com apenas uma estatueta na estante.

Enquanto isso, a Apple apresentou um longa que, sim, é uma refilmagem de uma produção francesa (‘A Família Bélier’), não inova em seu formato e tem alguns deslizes aqui e ali. Porém, também entrega muito coração, qualidade técnica e, principalmente, comove enquanto promove a diversidade com um elenco quase todo formado por deficientes auditivos. Quem era invisível agora tem voz – e voz pela linguagem dos sinais.

Isso sem falar que, para o público mais amplo que a Academia quer atingir, é uma história muito mais palatável do que a do concorrente, ainda mais no momento em que vivemos. Por fim, entra em cena o sistema confuso de escolha na categoria principal do Oscar, que premia consensos e penaliza títulos que causam sentimentos extremos entre os votantes.

Nesse mundo maluco da pandemia, onde Hollywood não poderia fugir do fato que, finalmente, teria que dar o Oscar de Melhor Filme para uma empresa comprometida com o streaming, ‘No Ritmo do Coração’ deu a oportunidade perfeita para passar uma mensagem. E de tirar da Netflix uma “primeira vez” que ela nunca terá.

Até porque, vamos deixar claro de uma vez por todas: o Oscar não premia objetivamente o “melhor filme do ano”. Há, parafraseando William Shakespeare, muito mais coisas entre Hollywood e a terra do que sonha a nossa vã filosofia.

Pois é. Sorte da Apple. E Steve Jobs, morto em 2011, certamente estaria impressionado e orgulhoso do que Tim Cook conquistou em tão pouco tempo. Duas características, como sabemos, extremamente raras para o genioso executivo.

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