“Os cinemas vão ressurgir como igrejas”, diz Christopher Doyle, diretor de fotografia de Wong Kar Wai “Os cinemas vão ressurgir como igrejas”, diz Christopher Doyle, diretor de fotografia de Wong Kar Wai

“Os cinemas vão ressurgir como igrejas”, diz Christopher Doyle, diretor de fotografia de Wong Kar Wai

De filmes como ‘Amor à Flor da Pele’ e ‘Amores Expressos’, Doyle fala sobre memória, streaming e futuro em entrevista exclusiva ao Filmelier

Matheus Mans   |  
24 de março de 2021 10:01
- Atualizado em 25 de março de 2021 12:54

Não há cinéfilo que discorde: Wong Kar Wai é um dos maiores cineastas vivos. Diretor de ‘Amores Expressos’ e ‘Amor à Flor da Pele’, ele comandou filmes sensíveis como poucos, sempre deixando as emoções entranhadas em sua narrativa. Não é à toa que a MUBI fez um resgate de sete filmes, alguns restaurados em 4K, em exibição entre 19 de março e 30 de abril.

No entanto, não é apenas Kar Wai o responsável pelos bons resultados nas telas. O cineasta chinês sempre deixou bons nomes por trás das câmeras ao seu lado. E um deles, sem dúvidas, é o diretor de fotografia Christopher Doyle. Nascido na Austrália e amante da cultura oriental, ele deu o tom de títulos como ‘Paranoid Park’, ‘Herói’ e, é claro, do cinema de Kar Wai. 

‘Amor à Flor da Pele’ é um dos trabalhos mais elogiados de Doyle (Crédito: Divulgação/MUBI)

Foi ele o diretor de fotografia de ‘Amor à Flor da Pele’, um dos filmes mais celebrados de Kar Wai e da história do cinema — e que rendeu um prêmio à Doyle em Cannes. Ele também colocou sua assinatura em ‘Amores Expressos’, outro clássico.

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“Cinema para mim é sobre pessoas no espaço”, resume Christopher Doyle, em entrevista exclusiva por e-mail ao Filmelier. “[…] eu acredito que os cinemas vão ressurgir como igrejas e mesquitas, como uma experiência compartilhada”, afirma – sem fazer referência ao fechamento dos espaços e a sua substituição por instituições religiosas, mas sim à “comunhão” que o local proporciona a quem gosta de filmes.

Na conversa, o cineasta também comentou sobre a experiência de trabalhar com Kar Wai. “O maior presente que ele me deu é a pergunta: ‘isso é tudo que você pode fazer, Chris?'”.

O bate-papo com Christopher Doyle na íntegra:

Filmelier: Filmes de Wong Kar Wai estão sendo restaurados. Como o senhor vê a importância desse movimento de resgatar esses filmes clássicos e, principalmente, como vê a restauração dessas produções?

Christopher Doyle: Eu fico me perguntando sobre essa ideia de “restaurados”. Claro, o filme é feito de materiais que se deterioram com o tempo… ou será que amadurecem como queijo ou vinho? Bem que eu gostaria.

Eu não vejo meus filmes. Eles são mais como memórias para mim. Mas, infelizmente, as crianças de hoje foram ensinadas a ficar online em vez de refletir. [Ensinadas] A pesquisar uma questão no Google em vez de pensar sobre ela. Então, eu acho que pelo menos dar a esses filmes as ideias e imagens e sugestões que eles podem ou não conter é a única forma válida de manter a conversa daquele filme atual.

Filmelier:  O que esses relançamentos e restaurações impactam em seu trabalho e memórias como cineasta?

Christopher Doyle: Um filme, para mim, é dar e receber intenções. Cinema para mim é sobre pessoas no espaço. Os filmes que fiz com Wong Kar Wai (e com outros) são [como] um disco. Sempre sinto que estamos “procurando o filme”, em vez de estruturar uma história ou tentar marcar um ponto. Então, se eu olhar para trás para os filmes [que trabalhei], eu vejo mais os momentos “ah-rá”, em que isso acontece.

Christopher Doyle é um dos nomes mais elogiados no universo da cinematografia (Crédito: WikiCommons)
Doyle é um dos nomes mais elogiados no universo da cinematografia (Crédito: WikiCommons)

Filmelier: Sr. Doyle, quais são suas memórias de trabalhar em parceria com Wong Kar Wai?

Christopher Doyle: O maior presente que ele me deu é a pergunta: “isso é tudo que você pode fazer, Chris?”. Muitas vezes, após um dia muito longo e pouco sono em quartos muito quentes, eu respondo: “sim, no momento isso é tudo que eu posso fazer”. Fiquei sem energia e não tenho mais ideias de como tornar a cena melhor ou me mover mais rápido ou celebrar as ideias de outra maneira.

Mas, às vezes, a pergunta de Wong Kar Wai chega até mim: “isso é tudo que você pode fazer, Chris?”. Me lembra que talvez eu não tenha pensado muito sobre a ideia, ou talvez devêssemos iluminar o espaço de uma maneira diferente, ou talvez… Eu deveria apenas deixar ir, deixar acontecer, dar um passo para trás e deixar o filme se fazer da maneira que merece… E é então que eu percebo que NÃO É TUDO QUE EU POSSO FAZER.

Graças à pergunta de Wong Kar Wai, nós avançamos para fazer algo melhor do que o que eu teria feito de outra forma.

Filmelier: Você tem um trabalho premiado reconhecido pela crítica, público e seus pares. Como é ver seu trabalho na tela da televisão, nos serviços de streaming? Você gosta de consumir filmes em streaming?

Christopher Doyle: Não sou muito bom com computadores, ou até mesmo com telefones, e definitivamente preciso de bons assistentes para me ajudar a descobrir o que uma câmera pode fazer.

Quase nunca vou aos cinemas. Acho que vejo mais filmes em aviões do que nos cinemas, mas eu sei que algumas ideias precisam ser compartilhadas com o público. Então, eu acredito que os cinemas vão ressurgir como igrejas e mesquitas, como uma experiência compartilhada. E, ainda, todos nós sabemos que a maioria das pessoas só vê uma tela muito pequena e pessoal (o telefone ou o computador), por isso a forma como fazemos filmes tem de se adaptar a esta realidade.

Mas ainda mais empolgante para mim é que agora todo mundo é diretor de fotografia. Todos estão se tornando mais visuais, mais informados pelo que veem e gravam e compartilham com seus amigos e “seguidores”. Para mim, isso torna o que faço mais vital, me empurra a ser mais aventureiro. Isso faz com que os chamados cineastas “profissionais” trabalhem mais arduamente para fazer melhor e se adaptem às mudanças na tecnologia, no estilo de vida e nas formas de compartilhar ideias.

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