Análise: Em estreia no Brasil, Disney+ acerta na tecnologia e erra no conteúdo Análise: Em estreia no Brasil, Disney+ acerta na tecnologia e erra no conteúdo

Análise: Em estreia no Brasil, Disney+ acerta na tecnologia e erra no conteúdo

Plataforma de streaming da Disney não teve solavancos em seu lançamento na América Latina e trouxe uma ótima experiência, mas ficou devendo parte do conteúdo que o público queria ver

18 de novembro de 2020 13:39
- Atualizado em 19 de novembro de 2020 15:47

Se for para definir em uma única palavra o lançamento do Disney+ no Brasil e no resto da América Latina, que aconteceu ontem (17), é esta aqui: paradoxo. Afinal, a Disney, um grupo de mídia e entretenimento gigantesco, acertou na tecnologia e despertou reclamações sobre o seu conteúdo – quando o esperado era justamente o contrário.

Confesso: esperava que o lançamento da plataforma de streaming por assinatura na nossa região fosse mais acidentada. Explica-se: a estreia do Disney+ nos Estados Unidos foi recheada de solavancos, com o serviço caindo e problemas do tipo. Era bem possível que o cenário se repetisse nesta terça, afinal, além da demanda norte-americana e europeia, adicionariam a América Latina e todo um interesse represado por parte de nós, latino-americanos. Minha previsão foi furada.

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Disney+ e suas cinco marcas: Disney, Pixar, Marvel, Star Wars e National Geographic
As marcas presentes no Disney+, que acaba de chegar ao Brasil (Imagem: divulgação / Disney)

O Disney+ aguentou o tranco, mostrando que a Disney fez a lição de casa desde o lançamento de um ano atrás. Houve, apenas, relatos isolados de usuários recebendo os códigos de erro 39 (“pode ser um problema de disponibilidade de direitos de licença ou outro problema no Disney+”, diz a empresa) e 83 (“acontece por um problema de compatibilidade do dispositivo, um erro de conexão ou um problema na conta”).

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Mais do que isso: a plataforma está funcionando de forma extremamente fluída, com uma qualidade de imagem melhor que a da Netflix. Há claramente um bit rate maior que a da concorrente direta, melhorando a qualidade da imagem e a experiência geral do espectador – mesmo que ele não perceba.

Bit rate, no caso, é a taxa do fluxo de transferência de bits. Quando maior, melhor a qualidade da imagem, mas também é maior o consumo de banda da internet – tentando resumir de forma bem simples o assunto. Ok, se a sua conexão está ruim, esse bit rate cai para manter fluído o streaming de vídeo. Mas, mais do que isso, diminuir esse fluxo de transferência pode ser uma forma de “salvar” um pouco os servidores da plataforma de video on demand, garantindo que ela não dê problemas para todo mundo.

Além disso, a Disney, como era de se esperar pelo trabalho já feito na mídia física e em outras plataformas, trouxe uma alta qualidade de transferência dos vídeos para o ambiente digital. Mesmo as clássicas animações dos anos 1920, 1930 e 1940 estão com uma imagem, dentro do possível, impecável. Isso, claro, dentro dos limites do equipamento que tenho aqui para testar.

Interface do Disney+
A interface do Disney+ é simples e fácil de ser utilizada, ainda que precise de alguns ajustes (Imagem: reprodução / Disney)

Tudo envelopado por uma interface que conversa bem com o usuário, dividindo os conteúdos da Disney por marcas e relativamente fácil de navegar. Entre os apps, a experiência é praticamente a mesma em todos os dispositivos, adaptando-se apenas ao tamanho da tela.

Se o Mickey me perguntasse o que precisam corrigir, diria que são duas coisas. A primeira é trazer um scroll de tela vertical com todos os conteúdos, em vez do scroll de uma única linha e horizontal que existe hoje – facilitaria para ver todas as opções. A segunda é, no perfil infantil, ter a chance de definir a classificação indicativa do que é exibido – como a Netflix faz.

Em termos de tecnologia, o Disney+ mostra-se muito bom. E o primeiro paradoxo é justamente esse: um acerto tecnológico vindo de um grupo de mídia e entretenimento.

Localização problemática

No entanto, a Disney erra naquilo que, teoricamente, esperavam-se acertos. O primeiro foi na localização. Talvez por algum engano (a empresa não respondeu o nosso questionamento sobre o assunto, por isso fica difícil saber a causa), alguns conteúdos entraram com áudio e/ou legendas em português de Portugal. É o caso dos curtas clássicos, por exemplo.

Se já é um pouco difícil entender o Donald com sua voz de pato, descobri que isso se torna uma missão quase impossível com o sotaque lusitano.

‘Hamilton’ no Disney+: apenas legendas em inglês (Foto: divulgação / Disney)

O ponto mais polêmico, claro, é o fato de ‘Hamilton’ não ter qualquer localização na nossa língua. Entende-se o fato do musical não ter dublagem em português, mas também não ter legendas? Há apenas a opção de closed caption na língua original, o que ajuda nos momentos em que os personagens falam mais rápido – mas o vocabulário avançado certamente limita o conteúdo a quem é fluente e tem bastante conhecimento da língua inglesa.

Ao Filmelier, a Disney informou que “foi uma decisão criativa de não ter legendas e nem dublagem [de ‘Hamilton’] em nenhum idioma na América Latina”. Ou seja, não se trata de um erro, mas sim de uma decisão da empresa.

Decisão essa que pode ter ligação com o próprio roteirista, produtor e estrela do musical. Lin-Manuel Miranda tuitou sobre o assunto em junho passado, quando o longa chegou ao Disney+ nos países onde a plataforma já estava disponível. “Uma vez que adiantamos o lançamento em um ano e meio, nós vamos adicionar alternativas de legendas aos poucos (Sinto muito por todas as palavras, tradutores fervorosos, há tantos e essa culpa é minha).”

Depois da recepção negativa nas redes sociais e cobrado por fãs, o ator e roteirista esclareceu um pouco mais do assunto, e em bom português.

Como diz o velho ditado brasileiro: “o perfeito é inimigo do feito” – e parece ser exatamente esse o caso aqui. A “decisão criativa” cai no colo de Miranda, que preferiu segurar qualquer tradução do que ver uma legenda que, de alguma forma, deixasse de lado métricas musicais e rimas, ou que fizesse isso de um jeito que não fosse bem-visto por ele.

Porém, isso afasta o público brasileiro de uma obra que não era só aguardada, mas que, vamos ser sinceros, pode ser encontrada em versão legendada pela internet. São os próprios Lin-Manuel Miranda e Disney que saem perdendo, seja em visualizações da peça no Disney+, seja em relação ao controle criativo da localização.

Falta de conteúdo

Outro paradoxo do lançamento foi naquilo que a Disney tem de abundante: o conteúdo. A plataforma chegou com todos os filmes de ‘Star Wars’, a maioria dos longas da Marvel Studios, produções inéditas no nosso país, diversas séries, clássicos… Porém, parte do público olhou para o que estava faltando – como já trouxemos aqui no Filmelier.

A estratégia do Disney+, e não julgo aqui se foi acertada ou não, foi segurar parte do conteúdo no lançamento. Assim, vão disponibilizando o que faltam aos poucos, na tentativa de evitar o que o mercado chama de “churn”. Ou seja, é a rotatividade, quem assina, fica algum tempo (às vezes, apenas dentro do período gratuito de testes) e vai embora.

Vamos ser sinceros: a maior taxa de cancelamento de uma assinatura é logo no começo, na maioria das vezes quando o assinante percebe que aquele produto não lhe traz muito valor. Quando essa presença se amplia, o serviço é simplesmente incorporado à vida da pessoa, que mantém a assinatura muitas vezes sem nem perceber. Ao segurar séries e temporadas agora, a Disney quer justamente te segurar por mais tempo, até você nem se lembrar mais que paga R$ 27,90 por mês.

Não se engane, a Netflix faz algo parecido. Tanto é que é comum ler, em comentários em publicações aqui do Filmelier, frases como “está de graça na Netflix”. Não é de graça.

‘Planeta do Tesouro’ é um dos filmes que ficou de fora do Disney+ no Brasil (Imagem: divulgação / Disney)

Por isso, séries animadas como ‘X-Men’ e o ‘Ducktales’ original só estão com a primeira temporada. ‘As Visões da Raven’ e ‘Lizzie McGuire’ ficaram totalmente de fora, assim como os longas ‘Planeta do Tesouro‘ e ‘Clouds‘. Esse último, inclusive, está atraindo bastante procura aqui no Filmelier.

Há, também, a questão do licenciamento e direitos de distribuição. Os filmes do Homem-Aranha, mesmo aqueles que fazem parte do Universo Cinematográfico Marvel, são da Sony – e não houve acordo com a Disney para disponibilizá-los na plataforma com um plus no nome.

Tudo isso caiu como uma luva para um comportamento humano bastante comum: esquecer o que tem na mão e pensar apenas no que não tem.

Extras no Disney+

O que poucos comentaram – e que, ao meu ver, é um dos trunfos do Disney+, é que diversos filmes na plataforma trazem extras. Aquele que era o principal diferencial da mídia física (DVD e Blu-ray), até hoje tinha sido pouco explorado no video on demand. Apenas a Apple TV, plataforma de compra e aluguel, trazia extras.

São conteúdos como documentários de bastidores, cenas deletadas, erros de gravação, curiosidades… Muitas vezes, eram coisas que, para assistir, era necessário comprar boxes caríssimos ou edições duplas em Blu-ray/DVD dos filmes. Ter esse tipo de conteúdo no streaming por assinatura é ótima notícia para os fãs mais curiosos ou fervorosos.

Marketing forte

Como era de se esperar de um grupo como a Disney, a estratégia de marketing para a nova plataforma foi forte. Muita presença digital, campanha em redes de televisão nacional e parcerias com outros grandes grupos no Brasil.

A mais relevante, claro, foi com a Globo. A emissora aberta do grupo possui uma projeção gigantesca, e trazer os dois primeiros episódios de ‘The Mandalorian’ na Tela Quente foi um ótimo cartão de visitas. O mesmo pode se dizer dos comerciais em horário nobre.

Família assistindo ao Disney+
A primeira atenção do público o Disney+ já conseguiu (Foto: divulgação / Disney)

Porém, um ponto pouco comentado da estratégia foi justamente ter a Globo, em pacotes com o Globoplay, comercializando assinaturas do Disney+. A cobrança, ainda mais em um mercado como o brasileiro, é sempre um desafio – e a Disney percebeu que seria mais bem-sucedida se dividisse isso com outros parceiros.

A estratégia se repetiu com Bradesco e Mercado Livre, com esse último permitindo pagar a assinatura por boleto. Um diferencial importante para ajudar a popularizar o Disney+, já que nem todos possuem acesso a cartão e há aqueles que nem conta bancária possuem.

Entre erros e acertos, é possível dizer que (quase) tudo deu certo com a chegada do Disney+: a parte mais relevante do conteúdo está lá, a plataforma não caiu e atraiu a atenção do público. Porém, o maior desafio começa agora: manter o Disney+ em evidência, e crescer em assinaturas de forma constante, com uma baixa rotatividade dos usuários.

Vamos ver se o Mickey mantém o folego na maratona da mesma forma que conseguiu nos 100m rasos.

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