‘Não! Não Olhe!’ explora (e questiona) nossa necessidade compulsiva por violência ‘Não! Não Olhe!’ explora (e questiona) nossa necessidade compulsiva por violência

‘Não! Não Olhe!’ explora (e questiona) nossa necessidade compulsiva por violência

Com ‘Não! Não Olhe!’, que estreia nos cinemas nesta semana, o diretor Jordan Peele entrega um filme que funciona muito bem como comentário social e entretenimento

Lalo Ortega   |  
24 de agosto de 2022 15:45
- Atualizado em 27 de agosto de 2022 16:33

Há algo que desperta em nós cada vez que um vizinho briga com outro do lado de fora da nossa janela. Ou quando alguém no Twitter posta fotos daquele artista que caiu no meio de um show. Ou quando um noticiário mostra as imagens sangrentas da guerra ou de um ataque terrorista. Ou, até mesmo, quando um amigo te manda fotos das últimas fofocas do momento: simplesmente temos que olhar. É uma necessidade compulsiva que vem como uma coceira incômoda e odiosa, e não vai embora até que seja arranhada, satisfeita.

É a doença que acomete a nossa sociedade desde a invenção do cinematógrafo, agravada apenas pela proliferação de pequenas janelas para o mundo que todos carregamos em nossos bolsos (o hipercinema e a tela inteira que Gilles Lipovetsky e Jean Serroy escreveram sobre mais de uma década atrás).

O cinema e os meios de comunicação se alimentam dessa nossa vontade irresistível de assistir a tudo, mesmo que sejamos inundados com mais estímulos audiovisuais do que podemos (ou devemos) processar. ‘Não! Não Olhe!‘ (‘NOPE’, no título original), que chega aos cinemas brasileiros amanhã, 25 de agosto, é o tipo de filme que, além de explorar nossa compulsão voyeurística, a usa para nos convidar a questioná-la.

Essa é uma das razões pelas quais qualquer um que entrar em uma sala de cinema esperando ver um simples filme de terror de OVNIs (completamente compreensível, considerando seus materiais promocionais) ficará justificadamente surpreso com suas imagens iniciais.

Publicidade

E não é como se não houvesse discos voadores (ou algo próximo a eles) no terceiro longa-metragem do diretor Jordan Peele (‘Corra!‘, ‘Nós‘). Acontece que o longa-metragem nos recebe com uma imagem enigmática de um set de televisão deserto, exceto por alguns corpos no chão (estão mortos? A mobília nos impede de afirmar isso com certeza) e um chimpanzé ensanguentado que parece ser o perpetrador. Uma placa pisca também pisca em um silêncio constrangedor: “Aplausos”.

'Não! Não Olhe' explora (e questiona) nossa necessidade compulsiva de violência
O introvertido OJ e a extrovertido Em contam ao público um pedacinho da história do cinema em ‘Não! Não Olhe!’ (Crédito: Divulgação/Universal Pictures)

🎞  Quer saber as estreias do streaming e dos cinemas? Clique aqui e confira os novos filmes para assistir!

Depois, ‘Não! Não Olhe!’ começa com seu enredo principal: em um remoto riacho da Califórnia há um rancho de cavalos usado para cinema e televisão, operado por Otis Haywood (Keith Davis) e seu filho, Otis Jr. “OJ” (Daniel Kaluuya).

No entanto, em um determinado dia, algo misterioso faz chover pedaços de metal do céu, tirando a vida do Otis pai. OJ e sua irmã Emerald “Em” (Keke Palmer) herdam o rancho, mas as finanças não estão boas. Um de seus clientes é Ricky “Jupe” Park (Steven Yeun), um ex-ator infantil conhecido por estrelar um programa de TV ao lado de um chimpanzé, que terminou em tragédia. Agora, Jupe vive de um parque temático que explora suas antigas glórias e a curiosidade pelo incidente com o macaco.

Eventualmente em ‘Não! Não Olhe!’, OJ e Em descobrem o que parece ser um OVNI roubando seus cavalos, e os irmãos estão tão determinados a provar sua existência que montam câmeras em seu rancho e vão atrás dele.

Mas o que isso tem a ver com o chimpanzé e o parque de diversões não é aparente para grande parte de ‘Não! Não Olhe!’ (longe disso). Mas Peele, tão habilidoso como criador de espetáculos de gênero quanto como comentarista social, semeia pistas durante as pouco mais de duas horas de filmagem do filme.

‘Não! Não Olhe!’, em seu aspecto de entretenimento, Peele nos dá uma produção de horror e ficção científica na mais pura tradição “spielbergiana”: a presença ameaçadora do desconhecido e o espanto chocante dele, são emprestados de ‘Contatos Imediatos do Terceiro Grau‘. Mas, como em ‘Tubarão‘, Peele dota sua ameaça central com um arrepiante halo de mistério, revelando apenas o que é estritamente necessário sobre ela.

'Não! Não Olhe' explora (e questiona) nossa necessidade compulsiva de violência
‘Não! Não Olhe!’ nos mantém adivinhando, mostrando apenas o necessário (Crédito: Divulgação/Universal Pictures)

Assim como foi ‘Corra!’ na época, ‘Não! Não Olhe!’ é o tipo de filme que oferece puro espetáculo cinematográfico, para ser apreciado em um nível superficial (exceto que, com um orçamento de produção de US$ 68 milhões, é de longe o maior e mais caro filme da carreira de Peele).

Porém é o que o filme diz sobre isso, sobre nosso prazer obsessivo de ver a dor e o sofrimento dos outros em quantidades quase anestésicas, que o faz transcender seu mero status de um bom show de terror e ficção científica.

O que ‘Não! Não Olhe!’ diz sobre nossa cultura audiovisual

“Eu jogarei imundície
sobre você, e o tratarei
com desprezo; farei de
você um espetáculo.”

Naum 3:6

Voltando ao que a tragédia do chimpanzé, o rancho e o OVNI têm a ver um com o outro, ‘Não! Não Olhe!’ sugere um antecedente comum para nós em uma cena que parece trivial.

Acontece que OJ e Em afirmam que sua família tem sido parte fundamental da história de Hollywood (e do cinema como um todo), pois afirmam ser descendentes do cavaleiro anônimo de ‘O Cavalo em Movimento’, parte do estudo da ‘Animal Locomotion’ realizado por Eadweard Muybridge no final do século XIX.

A série de cronofotografias é uma das precursoras do próprio cinema. Ou, talvez, seu pecado original (não é coincidência que ‘Não! Não Olhe!’ comece com o versículo bíblico citado acima).

Em outras palavras, tudo isso remete aos primórdios do cinema, à capacidade da humanidade de capturar imagens, reproduzi-las na tela e oferecer ao mundo a capacidade de olhar. Uma epidemia de voyeurismo que germinou na inocência do entretenimento e da arte, mas cresceu na terra da exploração que pode ser tão degradante quanto entorpecente.

Pois, o fato de uma criança traumatizada por um chimpanzé assassino decidir explorar seu próprio trauma para ganhar dinheiro na vida adulta, só é possível porque há uma demanda no mercado impulsionada por tudo aquilo que é mórbido. Nossa cultura pop está cheia de curiosidades doentias: o fascínio pelo que aconteceu, em grande detalhe, quem foi a vítima e quem foi o vitimizador. A própria origem do nosso fascínio débil com a tempestade de merda que foi Depp vs. Heard, por exemplo. Nós simplesmente não podemos evitar.

Sem revelar detalhes, pode-se dizer que a ameaça antagônica de ‘Não! Não Olhe!’, de certa forma, parte dessa mesma morbidade e dela se alimenta. E Peele lhe dá ambiguidade suficiente para que sua origem seja a menos importante. Eles são alienígenas? Um troll com muito tempo e dinheiro? Algo mais? Realmente não importa.

O que Peele faz com a maestria “hitchcockiana” é incitar o desejo do nosso olhar. “Que diabos é isso?”, nos perguntamos constantemente, vendo meros vislumbres.

'Não! Não Olhe' explora (e questiona) nossa necessidade compulsiva de violência
A resposta para todas as perguntas sobre o OVNI de ‘Não! Não Olhe! é possivelmente: “não importa” (Crédito: Divulgação/Universal Pictures)

Mas, à medida que mais e mais personagens vislumbram a ameaça de frente (e sofrem as consequências), o diretor faz uma pergunta “sontagiana”: o que será de nós quando a violência e a morte inundarem as telas de nossos bolsos para nosso consumo compulsivo?

Será que as imagens entorpecem nossa humanidade até que a tirem de nós, condenando-nos a vagar pelos feeds de nossas redes sociais no tédio da indiferença?

‘Não! Não Olhe!’ estreia amanhã (25) nos cinemas. Se você quiser saber mais sobre o filme ou encontrar o link para comprar ingressos, clique aqui.

Publicado primeiro na edição mexicana do Filmelier News.

Siga o Filmelier no FacebookTwitterInstagram e TikTok.