No Brasil, Disney+ repete EUA e exibe alerta por conteúdo racista
O Disney+ finalmente chega ao Brasil hoje (17) e, como era de se esperar, com um catálogo recheado de novidades e também de clássicos conhecidos do público. Na seleção de filmes temos ‘Cinderela’, ‘A Bela Adormecida‘, ‘Bela e a Fera’ e também a saga ‘Star Wars’, produções da Marvel Studios e muito mais. No entanto, parte das produções mais antigas traz um alerta sobre o conteúdo racista.
‘Dumbo’, ‘Peter Pan’, ‘Mogli, o Menino Lobo’ são alguns dos clássicos que vem com a seguinte mensagem antes da reprodução: “Este programa inclui representações negativas e/ou maus tratos de pessoas ou culturas. Estes estereótipos estavam incorretos na época e continuam sendo incorretos hoje em dia”.
Outros filmes do estúdio que também apresentam conteúdo racista são ‘Aristogatas’ e ‘A Dama e o Vagabundo’. O aviso também explico o motivo desses conteúdos estarem no catálogo da Disney: “Em vez de remover esses conteúdos, queremos reconhecer o impacto nocivo que eles tiveram, aprender com a situação e despertar conversas para promover um futuro mais inclusivo juntos”.
Racismo e diversidade e do mercado cinematográfico
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Para entender esse posicionamento, o Filmelier conversou com Mariana Canuto, professora e pesquisadora sobre racismo e diversidade, e com Hsu Chien, diretor de cinema e TV e professor, sobre o assunto. “Eu acredito que seja importante continuar distribuindo esses conteúdos apesar de terem conteúdo racista. Mas é necessário refletir profundamente sobre isso, senão, filmes como esses continuarão sendo feitos. A primeira coisa é explicar que essas obras refletiam os pensamentos, crenças, do país, ou do do grupo social que o fez num determinado período da história. Neste sentido, somente essa explicação no início não é suficiente”, analisa Mariana Canuto. “Grandes empresas de produção como Disney e WarnerMedia precisam se tornar claramente antirracistas e apoiar os movimentos civis desde a base: contratando-te profissionais negros e LGBT, em todas as posições, apoiando produções com essas temáticas e se envolvendo nas causas que não envolvem o cinema diretamente. Para mim, o que o Disney+ faz assim como a HBO Max é uma jogada de marketing e não um apoio às lutas sociais. Isso é lógico no sentido que é uma empresa que visa o lucro, mas isso não quer dizer que não seja possível fazer as duas coisas. Não há outro futuro, não há passo pra trás. Quem não apoiar os movimentos das minorias sociais ficará para trás”, completa.
“Quem não apoiar os movimentos das minorias sociais ficará para trás”
Recentemente, a WarnerMedia retirou ‘…E o Vento Levou’ do HBO Max devido ao conteúdo racista e um tempo depois, o título voltou ao catálogo com uma explicação. A especialista em cinema Jacqueline Stewart, da Universidade de Chicago, argumenta em um vídeo antes da exibição que o filme “mostra uma imagem do sul dos EUA” antes da Guerra de Independência dos Estados Unidos “como um cenário romântico e idealizado que já se perdeu”. O diretor Hsu Chien, que é chinês e que cresceu com os filmes da Disney, não conseguia se identificar com personagens orientais que eles traziam em filmes como ‘Aristogatas’ e ‘Dama e o Vagabundo’: “Para uma criança, independente de sua raça ou cultura, assistir aos filmes significa entender que o que está sendo visto ali, é a representatividade do mundo. Por isso, eu não entendia porquê todos os orientais eram retratados como dentuços, usando chapéus de palha, tipo catador de arroz, e com os olhos tão apertados que eu não fazia ideia de como eles enxergavam”. “As falas então eram indecifráveis, ditas erradas para deixar claro que nós, orientais, não sabemos falar com clareza. Eu ficava me olhando no espelho e tentava entender aquela representatividade, e ao mesmo tempo, ficava em crise, achando que não era oriental o suficiente. Diferente dos negros, que eram vistos como servis, os orientais eram vistos como trapaceiros, pouco confiáveis. Foi um trauma grande na minha vida pessoal e estudantil, pois todos os colegas puxavam os olhos para deixar claro que era assim que deveríamos ser vistos”, completa ele.
“Ficava em crise, achando que não era oriental o suficiente”
Outro filme da Disney que também apresentava uma trama preconceituoso é ‘A Canção do Sul’, animação de 1946, que entrou no Disney+, mas que teve seu brinquedo retirado dos parques temáticos. A famosa atração Splash Mountain agora será uma homenagem a ‘A Princesa e o Sapo’, produção que traz a primeira princesa negra. “Quanto ao negros, essa servidão era clara no filme ‘proibido’ da Disney, ‘A canção do sul’, uma adaptação da Cabana do Pai Tomás, mostrando como os escravos eram bondosos com os senhores brancos. Em ‘Dumbo’, os corvos pretos eram sinônimo de malandros”, pontua Hsu Chien. “Eu sou totalmente contra qualquer forma de censura, principalmente na cultura. A Disney incluir cartelas antes de filmes considerados nos dias de hoje, ‘problemáticos’, é uma atitude corajosa e oportuna da empresa familiar. Importante levantar essa questão com as novas gerações e propiciar debates sobre o motivo da cartela existir. Cortar cenas jamais. Debater e provocar evolução do pensamento sobre o lugar da arte e em consequência, das vontades da humanidade.”
“É mais aceitável retirar o filme por causa dessas pessoas ou deixar a veiculação com um caráter documental?”
Mariana Canuto analisa também que “é importante pensar que existem filmes claramente racistas como obra e filmes com conteúdo racista. De qualquer forma, acho que é preciso ser clínico para analisar o que serve pra refletir sobre o passado e o que não serve.” A professora sobre racismo e diversidade pontua que essas produções continuarem sendo reproduzidas são relevantes para que a sociedade tenha uma “perspectiva histórica crítica”. Entretanto, isso ainda pode ser considerado o reforço do preconceito, pois tem todo mundo consegue fazer uma análise do que consome. “Outro ponto é que as pessoas atingidas pelo racismo no filme podem se sentir violentadas. Então fica a pergunta: é mais aceitável retirar o filme por causa dessas pessoas ou deixar a veiculação com um caráter documental?”, questiona a pesquisadora. “Do ponto de vista ético hoje essa é uma atitude vexatória, a gente passa a entender tudo isso melhor nas obras de arte em geral e coibir esse tipo de conteúdo nas produções”, finaliza Mariana Canuto.
Jornalista de cultura e entretenimento. Já passou pelo Papelpop, UOL e Revista Claudia escrevendo sobre beleza, moda, cinema, música e TV, e também trabalhou com produção na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Foi redatora do Filmelier.