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Crítica de ‘O Dublê’: excesso de cinema

Em Hollywood, existe uma patética aversão a riscos que, por um lado, parece erradicar a possibilidade de qualquer projeto que não seja baseado em um romance, quadrinhos ou uma franquia popular em excesso. Nesse sentido, poderia ser considerado um pequeno milagre a mera existência de O Dublê (The Fall Guy), uma comédia de ação inspirada em uma antiga série dos anos 80, que chega aos cinemas brasileiros em 1º de maio. Ou seria uma comédia romântica de ação? Comédia romântica meta com mistério e thriller de ação? Algo mais?

Isso nos leva ao outro vício dos estúdios de Hollywood: o risco deve ser mitigado por tantas garantias de sucesso quanto possível, o que se traduz na criação de histórias com algo a oferecer para todos os gostos, idades e gêneros (ou todos os “quadrantes”, no jargão de marketing).

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O Universo Cinematográfico da Marvel poderia ser o melhor exemplo desta tendência, cujos melhores exemplares são “bons”, enquanto os piores são equivalentes a uma pessoa que, na tentativa de agradar a todos possíveis, se dobra, torce e se adapta a todas as expectativas, sacrificando sua própria personalidade no processo. E infelizmente (pois no papel, parece divertidíssimo), O Dublê é outro caso semelhante. É um filme que tenta fazer algo para todos e, no processo, acaba se tornando um cansativo desastre de ritmo e tom que nem o carisma inesgotável de Ryan Gosling e Emily Blunt podem salvar.

Cantando nas Chamas

Escrito por Drew Pearce (roteirista de filmes como Homem de Ferro 3 e Velozes e Furiosos: Hobbs & Shaw) e baseado na série televisiva homônima dos anos 80, O Dublê é dirigido por David Leitch que, vale lembrar, foi dublê de ação (para estrelas como Brad Pitt e Jean-Claude Van Damme), além de coordenador de cenas de risco, antes de estrear como diretor com John Wick e Atômica. E faz sentido que alguém como ele dirija este filme. O Dublê é (respire fundo) a história de Colt Seavers (Ryan Gosling), um dublê de ação caído em desgraça que, após se aposentar devido a um acidente, é chamado de volta ao set no primeiro filme de sua amada ex, a diretora Jody Moreno (Emily Blunt). No entanto, tudo é um plano da produtora do filme, Gail (Hannah Waddingham, de Ted Lasso), que quer recrutar Colt para investigar o misterioso desaparecimento da estrela do filme, o famoso Tom Ryder (Aaron Taylor-Johnson), cuja ausência coloca a produção inteira em risco. Isso Colt não pode permitir, então decide jogar de detetive. É, em resumo, um filme sobre o trabalho anônimo (e às vezes ingrato) dos dublês de ação: é um grupo que ainda luta por reconhecimento da Academia de Hollywood. Dada a trajetória de Leitch, é compreensível que o tema deste filme seja próximo ao seu coração (sem mencionar que, segundo Gosling, ecoa a própria história de Leitch e sua esposa, a produtora Kelly McCormick).
O Dublê é cinema de ação sobre cinema de ação (Crédito: Universal Pictures)
De certa forma, e guardadas as proporções, poderia-se dizer que O Dublê aspira a ser o que Cantando na Chuva foi, em seu tempo, para os artistas que atravessaram a transição do Hollywood silencioso para o sonoro. Um objetivo ambicioso, portanto. E vale o clichê: é uma carta de amor ao cinema, ou pelo menos à criação de um de seus gêneros mais espetaculares – e lucrativos. O roteiro de Pearce encontra seus melhores momentos quando ironiza sobre o próprio cinema de ação, os clichês dos blockbusters (Mad Max com Duna? Não é?), seus heróis anônimos e o aparente absurdo de seus processos, tão toscos quanto anticlimáticos por trás das câmeras. Uma sequência particular, na qual Gosling é envolto em chamas para várias tomadas contínuas, é uma das mais divertidas.

O Dublê é excesso de tudo

Mas então vem a trama de mistério e é quando todo o assunto perde o equilíbrio. Colt é enviado na busca de Tom Ryder, e é aqui que a trama começa a perder o rumo e a atrapalhar seu próprio ritmo. Porque, em resumo, a busca pelo ator desaparecido dá uma volta sem sentido após outra, com muitos buracos de lógica para contar. Nosso protagonista faz malabarismos com sua investigação, com uma filmagem em andamento, e com seus esforços para reconquistar o coração de sua amada. Chega um ponto em que o ritmo se torna um desastre. Um exemplo isolado disso, e sem revelar detalhes, é uma sequência com uma perseguição e um karaokê. Isso já é bastante para qualquer filme, e O Dublê insiste em compensar suas lacunas narrativas com motivações para seus personagens tão tardias quanto complicadas. É então que a balança se inclina com brusquidão novamente para o lado da ação. Mas chegada a enésima sequência de combate ou perseguição, já se sente repetitiva. A graça de sua premissa – um dublê de ação jogando de detetive – já se esgotou.
Romance, humor, explosões: O Dublê quer fazer tudo (Crédito: Universal Pictures)
Dito isso, o resultado é um filme que quer fazer tudo: quer ser um romance, mas também uma comédia de ação, mas também um thriller de mistério, mas também uma sátira da indústria de Hollywood, mas também carta de amor a seus dublês de ação, mas também… É, em outras palavras, excesso de tudo, e ao mesmo tempo acaba sendo muito de nada. O Dublê tem um roteiro tão sobrecarregado, que parece precisar de três finais sucessivos para atar pontas soltas. Quando parece que tudo foi resolvido e o filme está para terminar, acontece outra coisa. E depois outra. Ao cabo de tudo, parece que passaram quatro horas (embora na realidade, dure apenas metade disso). “Este filme tem tudo”, poderia se dizer, e isso inclui uma incapacidade de frear seus excessos. Os envolvidos fariam bem em parar para pensar que, talvez, menos é mais. Aplica-se para as tomadas que precisa repetir um dublê de ação, mas também para as subtramas que deve ter um roteiro. E, acima de tudo, para as superproduções de Hollywood, cuja quantidade de zeros no orçamento parece inversamente proporcional à qualidade de suas histórias.

O Dublê chega aos cinemas brasileiros em 1º de maio.

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Lalo Ortega

Lalo Ortega é crítico e jornalista de cinema, mestre em Arte Cinematográfica pelo Centro de Cultura Casa Lamm e vencedor do 10º Concurso de Crítica Cinematográfica Alfonso Reyes 'Fósforo' no FICUNAM 2020. Já colaborou com publicações como Empire en español, Revista Encuadres, Festival Internacional de Cinema de Los Cabos, CLAPPER, Sector Cine e Paréntesis.com, entre outros. Hoje, é editor chefe do Filmelier.

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Lalo Ortega

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