Crítica de 'O Menino e a Garça': criação e destruição
Se 'O Menino e a Garça' fosse o último filme de Hayao Miyazaki, seria o fechamento perfeito para sua ilustre filmografia. Confira a crítica.
Como definir os filmes de Hayao Miyazaki, senão como mistérios? Desde a concepção, as obras do mestre da animação estão envoltas em incógnitas –raramente sabemos algo sobre elas até pouco antes de sua estreia. E mesmo então, como demonstra O Menino e a Garça –que chegou aos cinemas brasileiros neste 22 de fevereiro– podem se tornar fantasias quase inextricáveis. Um mistério a mais na equação: será, finalmente, este o seu filme derradeiro? Miyazaki se aposentará depois disso?
As respostas, é claro, nunca são simples nem definitivas (se é que chegam). Enfrentar pela primeira vez o novo filme do diretor pode deixar uma sensação inicial de admiração e confusão em partes iguais. Duas coisas estão claras: O Menino e a Garça é sobre mais do que um menino levado a um mundo de fantasia, e é Miyazaki em sua forma mais ambiciosa, mas também pessoal.
Miyazaki sobre Miyazaki
A história começa em 1943, no auge da Guerra do Pacífico. A mãe do protagonista, um garoto de 12 anos chamado Mahito, morre no incêndio de um hospital. Ainda afetado pela perda, Mahito é levado por seu pai, um fabricante de armamento aeronáutico, para viver na província japonesa, onde a irmã mais nova de sua mãe, Natsuko, se torna sua madrasta.
O menino passa seus dias sozinho, indiferente ao carinho e à gravidez de Natsuko ou às atenções das velhas empregadas. Uma garça, de comportamento estranho, o espreita todos os dias. Um dia, quando sua madrasta desaparece, Mahito é guiado pela garça até uma misteriosa torre, que havia sido selada após o desaparecimento de seu anterior dono, o tio-avô de Natsuko.
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Para encontrá-la, Mahito é arrastado dali para um mundo mágico cuja lógica surrealista é o que já estamos acostumados com Miyazaki. O Menino e a Garça nos apresenta, além do pássaro metamorfo titular, com mares povoados por navios fantasmas, exércitos de periquitos gigantes, meninas com poderes ígneos, almas prestes a se tornarem humanas e um velho que bem poderia ser o deus criador deste mundo.
Não é, portanto, nada com que os seguidores do diretor não estejam acostumados, pois ele já entregou obras carregadas de um simbolismo quase impenetrável, como A Viagem de Chihiro ou O Castelo Animado, para citar apenas dois exemplos.
Mas pode ser percebido, em princípio, como a introspecção de um artista veterano com os códigos e temas de sua obra coletiva. Como tantos outros filmes do diretor, O Menino e a Garça parte do pessoal: assim como Miyazaki, Mahito cresce no auge da Segunda Guerra Mundial, é filho de um fabricante de armas e mantém um vínculo forte com uma mãe doente, uma relação que define sua existência.
Vida e morte, criação e destruição, bondade e crueldade sempre coexistiram em seus universos. E assim como um velho deus criador, isolado em seu mundo tentando perpetuá-lo e manter seu delicado equilíbrio, o velho mestre trabalha em seu estúdio, obsessivo e meticuloso com sua arte e o que ela deixa para o mundo.
O poder do fogo
Porque, apesar de seu simbolismo extravagante, O Menino e a Garça mantém o coração emocional que Miyazaki também sustentou ao longo de sua obra. A dor pelos laços familiares quebrados, as complexas relações paternais, a morte de um mundo que, em si, é cruel com seus habitantes.
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No contexto do filme, Miyazaki dá ao fogo um duplo significado, talvez o mais evidente entre todos os outros. As chamas, que roubam sua mãe, são então reinterpretadas como um poder mágico, purificador e curador.
Miyazaki está nos expressando, talvez, a necessidade da perda, da morte e da destruição. Essa dor, contraparte inevitável da beleza, é um motor indispensável para a própria vida e para uma existência plena, cujo significado reside na criação e no legado.
É, portanto, a história de um velho mestre que, ciente de sua própria longevidade e mortalidade, se apresenta a nós, ao mesmo tempo, como um menino em busca de sentido e como um eremita deus criador que assimilou as contradições e dolorosas imperfeições que o mundo tem a oferecer.
E assim, mesmo que O Menino e a Garça não acabe sendo o último filme de Miyazaki (há sinais de que não será), é um fecho de ouro perfeito para uma filmografia paradoxalmente perfeita, obsessiva, adorada e enaltecida. Que legado.
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Publicado primeiramente na edição mexicana de Filmelier News.
Lalo Ortega é um crítico mexicano de cinema. Já escreveu para publicações como EMPIRE em español, Cine PREMIERE, La Estatuilla e mais. Hoje, é editor-chefe do Filmelier.
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