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‘Deserto Particular’, representante do Brasil no Oscar 2022, é sobre amor — e nada mais

O drama ‘Deserto Particular’, longa-metragem do cineasta baiano Aly Muritiba (‘Ferrugem’) e que chega aos cinemas em 18 de novembro, foi o selecionado pelo Brasil para tentar uma vaga em Melhor Filme Internacional no Oscar 2022. Não foi a decisão mais óbvia, já que o filme concorria com produções fortes como ‘Medida Provisória’, ‘7 Prisioneiros’ e ‘A Última Floresta‘. No entanto, está longe de ser uma escolha equivocada — o longa-metragem, afinal, transpira vida.

Inicialmente, a trama gira em torno de Daniel (Antonio Saboia), um policial de Curitiba afastado de suas funções por conta de algum ato ilícito. Depois, a história passa a acompanhar Sara (Pedro Fasanaro), uma mulher transexual no interior do Brasil que, em meio ao preconceito, precisa esconder sua verdadeira orientação sexual. Os dois, mesmos distantes e de realidades bem distintas, acabam se encontrando na internet. É paixão certeira.

Cena de ‘Deserto Particular’, com Antonio Saboia e Pedro Fasanaro (Crédito: Divulgação/Pandora Filmes)
Esse sentimento dos dois personagens, que estão em momentos vazios de suas vidas, vai se transformando conforme a trama avança. Daniel, cansado da rotina de se dividir entre o pai doente e o emprego sem perspectivas, decide radicalizar: vai atrás de Sara. Neste momento, tudo muda. Muritiba coloca a visão do filme na perspectiva da personagem de Pedro Fasanaro. O amor se estranha. E as coisas vão caminhando.

Profundidade de ‘Deserto Particular’

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A potência de ‘Deserto Particular’, no entanto, não surge dessas idas e vindas do amor. Surge do vazio desses dois personagens e como eles vão se completando, mesmo sem perceber — e, no caso de Daniel, até mesmo com uma raiva vinda do preconceito. Isso vai surgindo aos poucos no roteiro, assinado pelo próprio Muritiba e por Henrique dos Santos, que nos dá pistas da vida de cada um. Assim, conforme os sinais se completam, Daniel e Sara ganham densidade. A atuação de Saboia (‘Bacurau’) e do estreante Fasanaro ampliam a experiência. Fica claro no olhar desses dois personagens que há uma busca por algo maior que pode transcender o mero encontro físico. Eles, mais do que tudo, precisam de amor, atenção e alguém que complete o vazio que sentem.
Saboia coloca isso na tela de duas maneiras: ou pelo vazio quase catatônico no olhar, fruto talvez de uma paixão que tenta esconder, e a raiva desmesurada pela sexualidade de Sara. É interessante como essas duas expressões, que podem até se contradizer, ampliam a experiência do filme. Do lado da personagem de Fasanaro, há uma delicadeza nos gestos e até uma alegria no sorriso, mas que somem no olhar triste de julgamento que sofre. Externamente, Muritiba explora um tema comum em sua filmografia: a deterioração do espaço, da vivência. Falou sobre os problemas do sistema carcerário em ‘A Gente‘ (ele, aliás, é um ex-carcereiro), sobre a deterioração da saúde mental de adolescentes e do ambiente escolar em ‘Ferrugem‘ e, mais recentemente, sobre a noite da periferia em ‘Nóis por Nóis‘. Aqui, o cineasta finalmente coloca essa ótica sobre a sexualidade e a complexidade do amor, tendo como cenário um país retrógrado, infeliz e que coíbe outras pessoas por meio de imposições religiosas e afins. Ainda que recaia em temas exaustivamente abordados por aí, é interessante ver um cineasta como Muritiba indo do micro (a escola, a prisão, a noite da periferia) para algo tão grande assim, que mexe com estruturas sociais. No final, é interessante como, apesar de todos os sobressaltos, ‘Deserto Particular’ fale tanto, e tão bem, sobre o amor. Os créditos ao som de ‘Total Eclipse of the Heart’, de Bonnie Tyler, dão o tom. E é difícil não se emocionar com tanta sensibilidade na tela.

Tem chance no Oscar?

Dessa forma, pode-se dizer que ‘Deserto Particular’ é, sim, um bom filme. Potente, bonito, singelo. Mas, por outro lado, já surge aquela pulguinha atrás da orelha: tem chances de abocanhar a vaga de indicado em Melhor Filme Internacional no Oscar 2022? De um lado, há um certo otimismo: fala sobre o Brasil de hoje, interiorano, com seus preconceitos, desafios e, é claro, com pessoas tão diversas. Com isso, de certa forma, completa uma das necessidades que os membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas desejam: que aquele filme estrangeiro, a ser indicado na categoria, fale algo sobre o país em questão. Não podemos esquecer que os brasileiros já indicados na categoria, ‘O Pagador de Promessas’, ‘O Quatrilho’, ‘O Que É Isso, Companheiro?’ e ‘Central do Brasil’, trazem características precisas sobre o Brasil em suas respectivas épocas.
Longa-metragem explora a cinematografia e cenários amplos para traduzir o sentimento dos personagens (Crédito: Divulgação/Pandora Filmes)
Há, também, o ponto de falar sobre um tema relevante, mergulhando na diversidade da comunidade LGBTQIA+. No entanto, há um probleminha nessa caminhada: a divulgação. Para ser considerado pelos membros votantes, o longa-metragem precisa chegar aos ouvidos dessas pessoas da Academia — são, geralmente, mais de 200 selecionados, um por país do globo. ‘Deserto Particular’ tem, a seu favor, o fato de ter recebido reconhecimento em uma mostra paralela de Veneza. Mas, cá entre nós, não é o bastante. É preciso de (muito) dinheiro para chegar lá. Pré-estreias para convidados nos Estados Unidos, uma distribuidora americana, divulgação em veículos especializados. Por enquanto, infelizmente, ‘Deserto Particular’ não tem nada disso. É outubro e ainda tem um longo caminho a ser percorrido. Vai chegar lá? Não temos como saber. Mas com concorrentes como ‘Titane’ e ‘Compartment No. 6’, sabemos que vai ser uma briga boa e muito difícil. Se você quiser conferir com os seus olhos, ‘Deserto Particular’ está na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O longa chega ao circuito comercial dos cinemas em 18 de novembro.

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Matheus Mans

Jornalista especializado em cultura e tecnologia, com seis anos de experiência. Já passou pelo Estadão, UOL, Yahoo e grandes sites, sempre falando de cinema, inovação e tecnologia. Hoje, é editor do Filmelier.

Escrito por
Matheus Mans

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