Crítica: ‘Duna: Parte 2’ é uma especiaria diluída Crítica: ‘Duna: Parte 2’ é uma especiaria diluída

Crítica: ‘Duna: Parte 2’ é uma especiaria diluída

Embora espetacular, ‘Duna: Parte 2’ não consegue adaptar os grandes conceitos do romance nem oferecer um clímax emocionante

Lalo Ortega   |  
1 de março de 2024 09:46

Quão grandioso deve ser um romance de ficção científica para ser considerado uma espécie de “Santo Graal” inadaptável ao cinema? Publicado em 1965, Duna, de Frank Herbert, é considerado um dos mais influentes na história do gênero (se não o mais). Star Wars deve sua existência a ele, é repetido constantemente. Qualquer tentativa de adaptação cinematográfica – e houve várias – é objeto de ampla expectativa e escrutínio. O de David Lynch, o único realizado e lançado durante o século XX, acabou em um fracasso espetacular.

Quase 60 anos após a publicação do romance, estamos diante de sua segunda adaptação para o cinema, pelas mãos do diretor quebequense Denis Villeneuve. Ou a segunda parte, seria mais apropriado dizer. Porque o texto de Herbert é tão denso em sua mitologia que uma única adaptação seria muito extensa (o plano de Alejandro Jodorowsky era um filme de 14 horas, nada menos). Assim, três anos após a primeira parte (de duas horas e meia de duração), Duna: Parte 2 finalmente chega às salas de cinema brasileiras para outra rodada narrativa de 166 minutos.

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Missão cumprida. Com um custo estimado em 350 milhões de dólares para ambas as partes, o lendário romance de Herbert finalmente está completo em forma cinematográfica. O resultado é entretenimento quase sempre espetacular, mas irregular e vazio de emoção nos piores momentos. Mostra que 323 minutos totais de cinema, com os limites de sua linguagem e condições, não são suficientes para traduzir os matizes, complexidades e detalhes de certas obras literárias.

Ou pelo menos não sem diluí-las.

Domando o Shai Hulud

Assim como Villeneuve se empenhou em explicar, é preciso ver Duna: Parte 2 conforme diz o título: como uma continuação, e não uma sequência. Fiel a essa promessa, esta segunda parte começa exatamente onde a primeira parou.

Fugitivo da traição da Casa Harkonnen, Paul Atreides (Timothée Chalamet) e sua mãe, Lady Jessica (Rebecca Ferguson), adentram o deserto profundo de Arrakis, planeta que deveriam governar para administrar a extração da “especiaria”, substância essencial para a civilização do Império. O contato constante com ela, como acontece com os nativos Fremen no planeta, desperta habilidades psíquicas misteriosas nos humanos.

Treinada pela conspiradora Hermandad Bene Gesserit, cuja influência política e religiosa é considerável, Jessica está ciente das maneiras como linhagens são criadas e mitos são semeados nas civilizações através do universo. Em Arrakis, os Fremen falam de um “Lisan al Gaib” ou o “Mahdi”, um libertador que virá de outro mundo para salvá-los da opressão. Os mais fundamentalistas veem em Paul esse messias.

A segunda parte de Duna começa onde a primeira terminou (Crédito: Warner Bros. Pictures)
A segunda parte de Duna começa onde a primeira terminou (Crédito: Warner Bros. Pictures)

E Paul, jovem demais para ter se tornado duque sem ducado em um planeta hostil, oscila entre o desejo de vingança contra os Harkonnen e seu enamoramento por Chani (Zendaya), uma jovem guerreira Fremen com quem forma um vínculo forte. Como em toda jornada do herói, Paul deve enfrentar vários desafios mortais (como domar os Shai Hulud, os vermes gigantes da areia) para conquistar seu lugar entre os Fremen e, finalmente, libertar Arrakis do jugo Harkonnen… e do Império.

Comecemos dizendo que Denis Villeneuve consegue trazer com sucesso o universo imaginado por Frank Herbert para a realidade. Claro, há recursos, mas em uma era de blockbusters cujos orçamentos tendem a ser proporcionais à sua mediocridade e feiura (ainda é incrível que o terceiro Homem-Formiga custou mais do que ambas as partes de Duna separadamente), Duna: Parte 2 justifica o investimento.

Tanto os cenários de Arrakis quanto os ambientes brutalistas de Giedi Prime falam de civilizações distinguíveis, desenvolvidas, vivas. Mundos de espetáculos de gladiadores, enormes vermes na areia e conspirações políticas nas sombras que parecem autênticos.

Cabe dizer também que Duna: Parte 2 toma várias licenças criativas adequadas com os elementos mais extravagantes do material de origem para conseguir o efeito desejado. Sem dar detalhes, basta dizer que um dos personagens conceptualmente mais estranhos do romance é adaptado de uma maneira interessante. Se é o melhor, é discutível, mas a alternativa poderia ter quebrado completamente o tom e a verossimilhança do filme.

Duna: Parte 2 resolve bem alguns dos elementos mais estranhos do romance (Crédito: Warner Bros. Pictures)
Duna: Parte 2 resolve bem alguns dos elementos mais estranhos do romance (Crédito: Warner Bros. Pictures)

Outro acerto é o tratamento dado a Chani, que no romance original é pouco mais que uma concubina devota do profeta. No roteiro de Villeneuve e Jon Spaihts, seu ponto de vista está praticamente em equilíbrio com o de Paul, chegando ao ponto de ser antagônico ao dele em certo momento. É um personagem crítico do papel dos Fremen na profecia e na guerra, o que ajuda a equilibrar a narrativa do salvador branco que os Atreides trouxeram do céu.

No entanto, não se pode dizer o mesmo dos demais personagens. Muito pode ser atribuído ao próprio romance: Austin Butler – ajudado por certos matizes do roteiro – faz um trabalho monumental ao transformar seu Feyd-Rautha em um vilão memorável, mas ainda é outro sádico com facas. Rabban (Dave Bautista), outro capanga Harkonnen, também não é muito melhor: mata não um, mas dois lacaios nesta entrega apenas para liberar suas frustrações.

En outros casos, a adaptação desenvolve um pouco mais os personagens que são apenas incidentais no romance (ou nem isso). A popularidade e o talento de Florence Pugh já ultrapassam, de longe, os escassos minutos que ela tem em tela. Léa Seydoux se sente igualmente subaproveitada como Lady Margot Fenring, uma das Bene Gesserit que mal aparece nas páginas do romance.

São tropeços típicos de um filme que tenta fazer o melhor com suas limitações ao adaptar um romance tão denso. E, nesse processo, Duna: Parte 2 faz outros sacrifícios que realmente prejudicam o resultado.

Embora os Harkonnen não se destaquem por sua personalidade ou complexidade – são meros arquétipos do imperialismo, feios, violentos e vestidos de preto porque são maus –, desempenham um papel importante no tabuleiro de xadrez delineado pelo romance. Conhecemos os raciocínios e planos do Barão Vladimir Harkonnen (Stellan Skarsgård) a partir de sua perspectiva, com seus preconceitos e pontos cegos. Em nome da economia narrativa desta adaptação, muito do enredo intricado nos é revelado por outros personagens, por meio de diálogos expositivos.

Florence Pugh é um dos muitos talentos desperdiçados por Duna: Parte 2 (Crédito: Warner Bros. Pictures)
Florence Pugh é um dos muitos talentos desperdiçados por Duna: Parte 2 (Crédito: Warner Bros. Pictures)

Os limites do cinema (comercial)

E aqui está a grande questão que revela a impossibilidade do cinema, pelo menos em sua faceta mais comercial, de adaptar um romance como Duna: a necessidade de recorrer ao diálogo para cortar caminhos e abranger o máximo possível da trama.

Pela própria natureza, a adaptação do romance para o cinema é uma empreitada titânica e, consequentemente, custosa. Em parte por isso, foi coroada como “O Senhor dos Anéis desta geração“. Talvez o seja no sentido de conseguir adaptar literatura extensa e excessivamente densa para grandes filmes de consumo massivo (embora o de Peter Jackson seja incomparável: as três partes de sua trilogia foram filmadas ao mesmo tempo, um risco sem precedentes para um estúdio).

E nessas aspirações de consumo massivo, Duna: Parte 2 sacrifica muitas das possibilidades expressivas de traduzir os conceitos de Herbert para o cinema. Há alguns lampejos dessa genialidade possível: profundas transformações de consciência provocadas pela especiaria são representadas por imagens de fluidos e cores abstratas.

Mas Villeneuve não se arrisca mais, porque um projeto assim é grande demais para se expor ao rejeição da audiência massiva e falhar nas bilheteiras. A relatividade do tempo é um conceito fundamental no romance. A consciência de Paul se abre para infinitos futuros possíveis e depois vai além, ao ponto de se tornar circular para ele. Mas Villeneuve escolhe limitar-se ao diálogo, como se não tivesse feito coisas mais interessantes com o fluxo do tempo antes. O protagonista é reduzido a uma luta interna monótona pelo destino que foi escrito para ele, sem realmente mergulhar o público nas profundas implicações de seu conflito interno, tão moral quanto emocional.

E assim, como Paul no mar de tempo do romance, Duna: Parte 2 se perde em uma maré de intenções às vezes contraditórias. Quer abraçar a ambição de Herbert, mas também buscar a espetacularidade. Quer condensar tudo em menos de três horas, e com isso, priva todo o emocionante percurso do protagonista de sua emoção.

Chegado o clímax – que também não abraça completamente suas possibilidades para o espetáculo –, nem mesmo as pequenas surpresas reservadas pelo roteiro são suficientes para despertar a emoção e a intelectualidade, já adormecidas. Uma maravilhosa novela de ficção científica, alegórica em temas tão complexamente entrelaçados como o colonialismo, a política, a ecologia, a guerra e a religião como forma de controle e opressão; se traduz em um blockbuster comercial bem feito que dilui seu poder.

Mas, sim, como fica bonito no IMAX.

Duna: Parte 2 já está nos cinemas. Clique aqui para comprar seus ingressos.

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