Em ‘Escrevendo com Fogo’, a câmera na mão de uma mulher é um ato revolucionário
‘Escrevendo com Fogo‘, que ganhou o prêmio de público no aclamado Festival de Sundance e concorre a uma estatueta de Oscar 2022 de Melhor Documentário, conta a história de um jornal criado apenas por mulheres Dalits (mais baixa casta da cultura indiana), por meio da narrativa de três jornalistas: Meera Devi, Suneeta Prajapati e Shyamkali. O filme – já disponível para aluguel ou compra no streaming brasileiro – acompanha principalmente a transição do jornal impresso para as reportagens filmadas e difundidas em meio digital.
O documentário de Rintu Thomas e Sushmit Ghosh combina momentos de cinema verdade, em que acompanha as repórteres em busca das suas notícias, e linguagem mais jornalística televisiva, com entrevistas e tomadas de paisagens. Também traz as mulheres nas suas vidas íntimas, nas relações com os maridos e as famílias e conta um pouco de suas trajetórias pessoais.
Além disso, ‘Escrevendo com Fogo’ denuncia o fundamentalismo do Partido do Povo Indiano, organização nacionalista religioso de extrema direita, que governa o país desde 2014. Se destaca a cena em que Meera vai até a casa de um militante do partido e o filma falando de sua ideologia reacionária enquanto empunha uma espada. A imagem daquela mulher que usa a sua câmera como arma para se proteger de tamanha violência represada carrega a força que perpassa todo o documentário. Quase ao final de ‘Escrevendo com Fogo’ uma das personagens desabafa: “Não somos uma democracia e as mulheres não são livres.”. Mas as imagens já nos disseram isso muito antes. “It’s a men’s men’s world” (“É um mundo de homens”) que se explicita em diversas cenas em que vemos uma repórter do jornal Khabar Lahariya em meio a grupos compostos apenas por homens, tentando criar um espaço para expressar a sua visão de mundo. Mas não são apenas as questões de gênero que explodem no filme de Thomas e Ghosh, as estruturas de classe rígidas da sociedade indiana também estão presentes nas lutas políticas e sociais que estas mulheres travam diariamente.
Mas força ainda maior está na sequência em que todas as jornalistas do Khabar Lahariya fazem uma viagem à neve, para realizar rodas de debates sobre o futuro do jornal e suas perspectivas de participação. As cenas em que elas esquiam, brincam e riem juntas possuem uma alegria revolucionária. Talvez ainda maior do que o próprio trabalho que elas realizam. Ter uma causa, olhar e pensar o mundo, se expressar politicamente, em suma, ser um ser humano e um cidadão na sua sociedade, é o bem maior que a atividade profissional pode dar àquelas mulheres. Em meio a uma sociedade opressora politicamente em relação ao gênero, à classe e governada por um partido fundamentalista, as suas armas são as câmeras, a organização coletiva e o sorriso.
Crítica e pesquisadora de cinema, co-editora do Zinematografo. Colabora com o site Cine Festivais e já publicou em revistas nacionais e internacionais, como Filme e Cultura, Teorema, Fantômas e Cámbrica.