‘Homem-Aranha: Sem Volta para Casa’ e os “filmes de hominho” ‘Homem-Aranha: Sem Volta para Casa’ e os “filmes de hominho”

‘Homem-Aranha: Sem Volta para Casa’ e os “filmes de hominho”

A terceira aventura de Tom Holland como o Amigão da Vizinhança fecha o arco narrativo de sua trilogia de forma consistente, mas também expõe a falência criativa do Universo Cinematográfico Marvel

Lalo Ortega   |  
17 de dezembro de 2021 19:56
- Atualizado em 19 de dezembro de 2021 18:15

Eu tinha 12 anos quando o primeiro filme do Homem-Aranha de Sam Raimi foi lançado (o ano era 2002). Lembro que mesmo em um ano que viu a estreia do filme ‘O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel’ e um filme de ‘Star Wars’, o ‘Homem-Aranha’ era o evento mais esperado nos cinemas.

Afinal, era a primeira vez que veríamos o personagem mais amado da Marvel Comics nas telonas. Não havia “cinema de super-heróis”: a primeira parcela dos ‘X-Men’ mal havia sido lançada há dois anos; ‘Blade’ estava fazendo quatro anos. O Superman estava afastado dos outdoors há uma década e meia, e o Batman já estava há cinco anos enterrado sob a infâmia dos “batmamilos”.

E o Escalador de Paredes era algo especial, diferente de todos eles. Em um mundo repleto de deuses nórdicos, alienígenas, supersoldados e milionários voando em latas, Peter Parker é um menino do Queens que deve lidar com os hormônios da escola e da adolescência, combater o crime e consertar sua própria fantasia depois.

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Nunca soube muito de quadrinhos, mas sabia que Parker era um esquisitão que, sendo alguém “comum”, foi repetido por décadas por outros como ele, que buscam se encaixar e ser extraordinários. Por extensão, ele também falava comigo, um nerd com poucos amigos obcecado por video games.

Naturalmente, adorei ‘Homem-Aranha‘. Se Christopher Reeve havia levado milhares a acreditar que um homem podia voar, Tobey Maguire me levou a acreditar que um homem podia se balançar entre arranha-céus, lutar contra a tragédia de sua vida dupla e voltar para casa para jantar com tia May. Nunca tinha ouvido falar de Willem Dafoe antes, mas sabia que nunca esqueceria aquele nome e aquele rosto. Dois anos depois, o ‘Homem-Aranha 2’ deixaria a mesma marca em mim com Alfred Molina.

'Homem-Aranha: Sem Volta para Casa' e o cinema das figuras de ação
“Olá, Peter”, diz Alfred Molina em ‘Homem-Aranha: Sem Volta para Casa’, seguido por uma onda de histeria coletiva no cinema (Crédito: Reprodução/Sony Pictures)

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Então, quando os primeiros trailers de ‘Homem-Aranha: Sem Volta para Casa’ foram lançados, eu não pude deixar de ficar animado. Apesar das minhas (consideráveis) reservas sobre o atual boom do cinema de super-heróis, eu estava genuinamente interessado agora: dois dos antagonistas do cinema de que me lembro com mais carinho iam voltar para as telonas em um novo filme. O “fator nostalgia” me pegou.

Tanto reservas quanto nostalgia, tendo finalmente visto ‘Homem-Aranha: Sem Volta para Casa’ (dentro de um turbilhão de sigilo geralmente usado apenas em operações militares), posso dizer que minha experiência foi tão ambivalente quanto eu esperava. Não pude deixar de sorrir quando vi esses personagens dos filmes de Raimi novamente. Mas não pude deixar de sentir aquele vazio que acompanha um truque de mágica visto muitas vezes.

Com grande potência: o ciclo se completa

‘Homem-Aranha: Sem Volta para Casa’ começa exatamente onde seu antecessor, ‘Homem-Aranha: Longe de Casa’, nos deixou. Em um vídeo divulgado para a imprensa, Quentin Beck/Mysterio (Jake Gyllenhaal) incriminou o Homem-Aranha por sua morte. Além disso, ele também revelou a identidade do herói como Peter Parker (Tom Holland), o que tem um efeito massivo e imediato não apenas em sua vida pessoal, mas também na de seus entes queridos.

Assediado por câmeras, policiais e uma plateia furiosa, Peter vê suas chances de ir para a faculdade se esvaírem junto com as de sua namorada, MJ (Zendaya), e de seu melhor amigo, Ned (Jacob Batalon). Recusando-se a deixá-los sofrer as consequências de sua vida dupla, Parker recorre a Doutor Estranho/Stephen Strange (Benedict Cumberbatch) para que, com um feitiço, faça o mundo esquecer a identidade do Homem-Aranha. Exceto que tudo dá errado.

'Homem-Aranha: Sem Volta para Casa' e o cinema das figuras de ação
Momentos antes da tragédia “multiversal” em ‘Homem-Aranha: Sem Volta para Casa’ (Crédito: Reprodução/Sony Pictures)

Assim começa a missão de Parker, em que vilões de outros universos vazam para dentro de seu mundo, como Norman Osborn/ Duende Verde (Dafoe) e Otto Octavius​​/Doutor Octopus (Molina), mas também Flint Marko/Homem-Areia (Thomas Haden Church), Max Dillon/Electro (Jamie Foxx) e Curt Connors/O Lagarto (Rhys Ifans). Três franquias do Homem-Aranha que convergem em um único filme por meio do chamado multiverso, conceito introduzido na série ‘Loki’.

Com toda a loucura multiversal de sua premissa, ‘Homem-Aranha: Sem Volta para Casa’ consegue começar, paradoxalmente, como o mais terreno dos filmes, com Holland como o super-herói. Se lembrarmos que sua versão do personagem estreou com uma participação especial lutando contra o Capitão América, para mais tarde ser enviado para lutar contra alienígenas em ‘Vingadores: Guerra Infinita’; o que está em jogo aqui, pelo menos em princípio, é a chance de Parker e seus amigos serem apenas garotos normais que estão indo para a faculdade.

Ao mesmo tempo, o ‘Homem-Aranha: Sem Volta para Casa’ fecha o arco narrativo estabelecido para o herói em ‘De Volta ao Lar‘. Mais do que as versões de Maguire e Andrew Garfield, este Peter Parker foi apresentado como um adolescente tentando provar seu valor e aprender a ser um super-herói. A sombra de Tony Stark como mentor é lançada sobre os dois primeiros filmes (e ainda tem consequências nesta terceira), mas aqui, finalmente, Parker tem que aprender a ser um adulto e lidar com seus problemas – mesmo quando suas soluções bem-intencionadas acabam provocando novos desafios.

Para Peter, a questão de sua vida pessoal e futuro é, em primeiro lugar, o dilema central a ser resolvido, e que o devolve ao seu carinhoso status de Amigão da Vizinhança. Mas o roteiro vira para a esquerda quando o feitiço de Estranho é arruinado pela intervenção constante de Parker (obviamente). Isso acaba parecendo um mero pretexto para reciclar todos esses personagens, e para tudo o que vem a seguir nesta aventura metatextual, multidimensional e multi-franquia.

E atenção, até agora, nada do que foi mencionado é um dos temidos spoilers: tudo isso e muito mais está nas montanhas de trailers já publicados pela Sony Pictures anteriormente. No entanto, a mania de evitar vazamentos de enredo é o principal sintoma de uma doença: uma seca criativa total no novo Homem-Aranha.

A primazia do spoiler (“Eu quero fotos do Homem-Aranha!”)

Era a fila para uma mera cabine de imprensa, mas parecia que estávamos passando por uma revista de aeroporto: celulares desligados em bolsas lacradas, detectores de metal (para evitar gravadores escondidos), sem falar em embargos assinados com horas de antecedência, comprometendo jornalistas para não revelar quaisquer detalhes da trama, nem nesta nem em qualquer data posterior. Foi o que aconteceu comigo no México, pelo menos (e se repetiu no Brasil).

Claro, tudo isso é para que o resto do público chegue o mais “limpo” possível ao novo ‘Homem-Aranha: Sem Volta para Casa’, que estreou ontem, dia 16 de dezembro no Brasil (no mundo todo, as exibições para a imprensa aconteceram entre os dias 13 e 14).

No entanto, todas as medidas são paradoxais considerando que, nos últimos meses, toda a conversa do filme online tem sido sobre a infinidade de teorias que se desintegram até o último segundo dos trailers, em busca de qualquer evidência (por mínima que seja) da existência ou não – daquelas duas pessoas em que todos estamos pensando – no filme. De repente, somos todos nosso próprio James Jonah Jameson.

“Eu não deveria nem expressar emoção”, disse alguém no final da sessão em que estava, aparentemente uma Tiktoker. “Não sei como vou falar sobre ‘Homem-Aranha: Sem Volta para Casa’ sem spoilers”, alguém mencionou.

'Homem-Aranha: Sem Volta para Casa' e o cinema das figuras de ação
“Eu quero fotos do Homem-Aranha. Mas sem spoilers” (Crédito: Reprodução/Sony Pictures)

Esse é, eu acho, o problema. Não é que queiramos gritar os detalhes do enredo de cima para baixo na imprensa ao sairmos da sessão (gosto de pensar que a maioria de nós é razoável), mas existe a preocupação com a dependência dos sucessos de bilheteria atuais do enredo puro. Ou pior ainda: quantos personagens aparecem no filme ao mesmo tempo. É o equivalente cinematográfico da fantasia de uma criança: juntar um monte de action figures – ou “hominhos”, como se popularizou para muitos – e colocá-los para lutar, faça sentido ou não. Mas o cinema é (ou pelo menos pode ser) muito mais do que apenas seus componentes narrativos. Se revelar detalhes da trama é a pior coisa que pode acontecer ao seu filme, ele tem pouco a oferecer.

E, por exemplo, também não devemos sair do cinema de super-heróis. Só precisamos voltar algumas décadas, quando a preocupação era apenas fazer bons sucessos de bilheteria, e não uma série de piadas, lutas e participações especiais transformadas em algo semelhante a um filme. Uau, nem mesmo precisamos sair da franquia Homem-Aranha.

Porque, apesar de suas ambições multifacetadas e universais, o Universo Cinematográfico Marvel ainda não alcançou algo tão genuinamente aterrorizante como a cena com Doutor Octopus no hospital em ‘Homem-Aranha 2’, ou tão original quanto a luta contra ele em um trem. Se o personagem de Molina (e de Dafoe, por extensão) é uma presença tão marcante em ‘Homem-Aranha: Sem Volta para Casa’, é por causa do impacto de sua estreia em 2004.

Quinze anos depois, o nascimento do Homem-Areia em ‘Homem-Aranha 3’ continua sendo uma das cenas mais humanas em qualquer filme de super-herói. E não tem nem mesmo diálogo, apenas emoção evocada pelas expressões de um fantoche digital bem realizado e de uma trilha sonora competente.

Nem se trata de exaltar Sam Raimi como o grande autor do cinema de super-heróis: há aspectos de sua trilogia Homem-Aranha que envelheceram terrivelmente, como o tratamento abismal de suas personagens femininas.

No entanto, pelo menos havia uma visão criativa diferente o suficiente por trás disso, mesmo que nem sempre fosse a certa. As danças do “Bully Maguire” viverão na infâmia eterna, mas não foi à toa que continuamos nos lembrando disso quando o ‘Homem-Aranha: No Aranhaverso’ zombou delas. Filme que, aliás, já abordou o conceito de multiverso de homens e mulheres aranhas há três anos.

Essa aversão aos riscos criativos por parte da Marvel Studios faz com que todos os seus filmes tenham a mesma aparência, todos episódios de uma longa série de filmes mais preocupados em sugerir o que vem a seguir do que em contar algo original e emocionante em si.

No entanto, quando o destaque em ‘Homem-Aranha: Sem Volta para Casa’ vem de iterações anteriores da franquia, vale a pena trazer o assunto de volta à mesa. Os melhores momentos musicais do filme só aludem a algo que Danny Elfman compôs há quase 20 anos (ei, a canção tema principal de ‘Homem-Aranha: Sem Volta para Casa’ é uma versão da série dos anos 1960). Molina e Dafoe repetem suas frases icônicas, reduzidas a memes ou fantoches.

Pois, afinal, essa é a tática de ‘Homem-Aranha: Sem Volta para Casa’, a mesma que a Marvel Studios tem repetido ao longo de quase trinta filmes no Universo Cinematográfico Marvel: a referência da referência da referência, a nostalgia feita uma ferramenta de marketing, aqui reaproveitando os filmes com os quais várias pessoas, como eu, cresceram assistindo. É engraçado ver que tanto ‘Homem-Aranha 3’ (o último de Maguire) e ‘O Espetacular Homem-Aranha 2: A Ameaça de Electro’ (o último de Garfield) foram derrotados por saturar suas filmagens com mais personagens do que o razoável. Mas, graças à saudade, estamos prontos para perdoar ‘Homem-Aranha: Sem Volta para Casa’ pelo mesmo.

Mas, de maneira pertinente, o historiador Charles Maier disse que “a nostalgia está para a memória o que o kitsch está para a arte”. Ou seja, “o que falta já não existe”, apenas se tornou um produto que nos dá a ilusão de voltar a ele. Reunir três franquias e seus atores em um único filme é uma conquista logística louvável, aplaudida pelos executivos dos estúdios. No entanto, é inerte na seção criativa, bordão para justificar a reciclagem de ideias que surgem há vinte anos.

Melhor dito por Wade Wilson: “que roteiristas preguiçosos.”

Bundas nos assentos

“Você sabe o que fará as pessoas voltarem aos cinemas? ‘Homem-Aranha: Sem Volta para Casa’. E estamos felizes com isso.”

Era o cineasta Paul Thomas Anderson, em uma entrevista recente ao The New Yorker, sobre seu último filme, ‘Licorice Pizza’.

E ele está certo. Como cinéfilos e após quase dois anos de uma pandemia que atingiu fortemente a indústria, é um prazer que a bilheteria de um filme contribua para manter viva a experiência do cinema (a estimativa de ‘Sem Volta para Casa’ é de 290 milhões de dólares em todo o mundo em seu primeiro fim de semana).

Mas também é um otimismo questionável, considerando que outras propostas têm lutado para se manter à tona: ‘Amor, Sublime Amor’, o remake de Steven Spielberg, está se moldando para ser um fracasso de bilheteria, e o sucesso massivo do rastejador de paredes descarta a hipótese que a pandemia é a culpada.

Na lógica de Anderson, o sucesso de um blockbuster mantém os estabelecimentos abertos para que outros filmes sejam vistos nos cinemas. O problema é que ninguém parece querer ver outra coisa, então, natural e inevitavelmente, os cinemas serão ocupados com ‘Homem-Aranha: Sem Volta para Casa’ pelo resto do mês.

Curiosamente, a genealogia da questão nos leva de volta ao próprio Spielberg. Em seu ensaio audiovisual ‘The Summer of the Shark’ para a série ‘Voir’ da Netflix, a editora e fundadora do site AwardsDaily, Sasha Stone, conclui assim sobre o verão em que viu ‘Tubarão’, o blockbuster original:

“’Tubarão’ estava tão acima do orçamento que poderia ter sido um grande desastre, mas acabou sendo um dos melhores filmes de todos os tempos. Ele também usou uma vara irreal para definir um sucesso de bilheteria.

Os fãs de cinema não podem ser culpados por seus gostos, mas Hollywood parece ter aprendido as lições erradas naquele verão. Eles perseguiram o espetáculo e as cifras, mas esqueceram a essência de ‘Tubarão’. É uma história excelente, contada de forma brilhante”.

Aquele homem que se referiu aos filmes de super-heróis como atrações de um “parque de diversões” pode não estar exagerando tanto. A grande atração do ‘Homem-Aranha: Sem Volta para Casa’ é o mistério de descobrir se aquelas pessoas em quem pensamos aparecerão ou não.

O grande paradoxo é que tudo isso soa como um disparate nostálgico. Talvez os blockbusters que abraçam o campo e contam boas histórias, sem depender do fanservice, sejam coisa de um passado que nunca mais voltará. Pelo menos você vê que Willem Dafoe se divertiu muito filmando ‘Homem-Aranha: Sem Volta para Casa’ .

E vamos lá, a esperança é a última que morre: a própria Sony nos deu a centelha de originalidade que é o ‘Homem-Aranha: No Aranhaverso’ há apenas três anos. Espero que outro momento de inspiração não esteja tão longe.

Quer ainda motivos para assistir a ‘Homem-Aranha: Sem Volta para Casa’, além de encontrar o trailer e o link para a compra de ingressos? Clique aqui.

Publicado primeiro na edição mexicana do Filmelier News.

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