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‘O Telefone Preto’ e a necessidade da violência

Quais são os elementos essenciais de um filme de terror? A tensão constante de uma ameaça memorável e não totalmente compreensível, alguns dirão. Outros preferirão algo menos sugestivo, como a violência que não deixa nada para a imaginação.

Muitas produções do gênero pegam uma mistura dos dois, adicionam um protagonista que deve lutar para sobreviver contra um assassino ou entidade maligna (às vezes uma combinação de ambos), e pronto. Mas ‘O Telefone Preto‘ usa esses elementos para servir a um propósito diferente.

O filme – que estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, 21 de julho – é uma adaptação da história homônima contida no livro ‘Fantasmas do Século XX’ escrito por Joe Hill. A história é sobre Finney Shaw (Mason Thames), um garoto inteligente, mas inseguro que, durante uma tarde de 1978, é sequestrado por um criminoso conhecido simplesmente como “O Sequestrador” (o sensacional Ethan Hawke).

O telefone preto na parede é o único apoio de Finney… e sua ligação com o sobrenatural (Crédito: Divulgação/Universal Pictures)

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Preso em um porão à prova de som, Finney encontra apenas uma fonte incomum de apoio: um telefone preto na parede, desconectado, mas através do qual ele pode ouvir as vozes de outras crianças sequestradas e mortas por seu captor, todas determinadas a ajudar e impedir que Finney compartilhe do mesmo destino que o delas.

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Há, evidentemente, um elemento sobrenatural em ‘O Telefone Preto’ que, juntamente com a perspectiva infantil a partir da qual a narrativa é enquadrada, lembra clássicos do terror literário como ‘It: A Coisa‘ e ‘O Iluminado‘, escrito por Stephen King (pai de Hill). Histórias em que o caráter sobrenatural da ameaça fica em segundo plano: o principal é o que provém disso, simbolizando a brutalidade do mundo adulto, em constante tensão com a inocência infantil. O que diz muito sobre o tipo de monstro que essa adaptação do diretor Scott Derrickson (‘O Exorcismo de Emily Rose’, ‘A Entidade’) cria. Sim, há jump scares – técnica usada em filmes de terror com intuito de assustar o público, surpreendendo-o com uma mudança abrupta de imagem ou evento – aqui e ali, mas estamos lidando com algo que é mais como uma história de amadurecimento com uma lição agridoce, mas essencial.

‘O Telefone Preto’ aposta no terror sutil

O tema central da história de ‘O Telefone Preto’ é o abuso. Na escola, Finney é intimidado por outros colegas de classe, pelo que deve ser defendido por sua única amiga e até mesmo por sua irmã mais nova, Gwen (Madeleine McGraw). Em casa, a questão não é diferente: ele deve obedecer um pai alcoólatra (Jeremy Davies), que não hesita em responder com violência verbal e física aos menores aborrecimentos. Mas Finney decide não revidar: quando seu pai bate em sua irmã (por razões mais tarde relevantes para a trama), o irmão mais velho fica parado, apesar do desamparo e frustração visíveis. O roteiro de Derrickson e C. Robert Cargill (‘Ted Bundy: A Confissão Final‘) deixa claro desde o início que essa passividade está tendo um impacto em outras áreas de sua vida: Finney vacila antes de eliminar o rebatedor em um jogo de beisebol, e ele também não consegue falar com a garota que ele gosta. Logicamente, nada se compara ao teste decisivo de ser sequestrado por um assassino que pode matá-lo a qualquer momento. Trancado em um porão onde ninguém mais pode ouvi-lo (cuja atmosfera opressiva funciona como uma metáfora de sua vontade, sempre reprimida por dentro), Finney não tem escolha a não ser reconciliar que terá que haver conflito: a alternativa para não se defender é morrer.
Tanto Finney quanto Gwen são vítimas de abuso em ‘O Telefone Preto’ (Crédito: Divulgação/Universal Pictures)
A narração de ‘O Telefone Preto’ segue duas vertentes: a primeira, com Gwen tentando encontrar seu irmão através das visões psíquicas que vivencia. Mas a segunda e mais importante encontra o protagonista confinado a um pequeno espaço, à mercê de um personagem que vemos pouco. Ou seja, as surpresas são poucas (e até convenientes demais em alguns casos). O coração de ‘O Telefone Preto’, então, está nessa atmosfera opressiva – impecavelmente alcançada pela seção técnica do filme, mais a perturbadora contribuição da performance de Ethan Hawke – na sensação de pavor de que, do outro lado da porta, há um pervertido esperando para cometer atos impensáveis ​​com uma criança. Impensáveis, mas sugeridos pelos vestígios de violência que vemos nas outras vítimas (ou o que restam delas). É aqui que ‘O Telefone Preto’ usa a violência, não como mero mecanismo de choque barato, tão explorado por inúmeras propostas de terror, mas como algo mais significativo. É, em primeiro lugar, um legado trágico que deve ser enfrentado, abraçado e aprendido, para que suas consequências desastrosas não se repitam. E assim vem o segundo aspecto: quando essas crianças perdem seus nomes, Finney está determinado a devolvê-los, recusando-se a deixá-los se tornarem meras estatísticas, em um registro de um serial killer. É o primeiro de vários fatos que nos convidam a questionar como nos relacionamos com a violência que nos cerca.

A polêmica ideia de combater fogo com fogo

À primeira vista, a mera menção de “abraçar a violência” pode soar como um absurdo, em uma época em que estamos enfrentando novas guerras, mortes nos jornais e notícias todos os dias e repressões violentas baseadas em raça, religião, gênero e orientação sexual. Mas talvez seja esse o ponto. Claro, Joe Hill situa sua história em um microcosmo americano, de uma sociedade que, quebrada pela Guerra do Vietnã, acaba se voltando contra si mesma para oprimir suas próprias minorias e seus próprios filhos. É um mundo muito particular, o que não significa que a experiência de Finney e das outras crianças não seja universal: a repressão e a privação das liberdades básicas continuam a ser o pão de cada dia, muitas vezes pela mesma razão que um degenerado sequestra uma criança na rua. Às vezes, resistir e lutar é a única alternativa para não morrer em injustiça: uma lição amarga, se a recebermos com a mesma inocência entorpecente de Finney. ‘O Telefone Preto’ é um filme fantástico em que o horror sobrenatural assume um papel inusitado e benevolente, sem medo de levantar a espinhosa ideia de que a violência às vezes é mais do que necessária.

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Publicado primeiro na edição mexicana do Filmelier News.

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Lalo Ortega

Lalo Ortega é crítico e jornalista de cinema, mestre em Arte Cinematográfica pelo Centro de Cultura Casa Lamm e vencedor do 10º Concurso de Crítica Cinematográfica Alfonso Reyes 'Fósforo' no FICUNAM 2020. Já colaborou com publicações como Empire en español, Revista Encuadres, Festival Internacional de Cinema de Los Cabos, CLAPPER, Sector Cine e Paréntesis.com, entre outros. Hoje, é editor chefe do Filmelier.

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