‘Oppenheimer’: verdades e mentiras do filme de Christopher Nolan
Sempre que uma cinebiografia chega aos cinemas, sempre fica aquela pergunta: será que foi assim mesmo? Ou será que exageraram? Aconteceu isso com Elvis, com Blonde e, agora, com Oppenheimer, novo longa-metragem do cineasta Christopher Nolan (A Origem, Batman: O Cavaleiro das Trevas) que estrou nos cinemas na quinta, 20 de julho.
Assim, trazemos aqui uma checagem de fatos sobre os principais assuntos abordados em Oppenheimer a partir de um dos documentos mais precisos sobre a história do físico: o livro Oppenheimer: O Triunfo e a Tragédia do Prometeu Americano, vencedor do Pulitzer e escrito a quatro mãos por Kai Bird e Martin J. Sherwin. Confira abaixo, com spoilers:
Oppenheimer foi um jovem emocionalmente instável
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No livro de Bird e Sherwin, há um elemento na biografia de Oppenheimer que é deixado de lado, mas que é de suma importante até mesmo para entender ações futuras do físico norte-americano: ele teve um começo de vida adulta absolutamente instável. Em Cambridge, ele teve uma espécie de colapso emocional, unindo a pressão por seu desempenho acadêmico com a inabilidade, naquele tempo, que o norte-americano tinha de conquistar mulheres.
Em determinado momento de sua passagem por Cambridge, de férias, Oppenheimer chegou a cogitar o suicídio. “Durante os feriados de Natal, Robert se viu caminhando ao longo da costa bretã, perto da aldeia de Cancale, para onde seus pais o haviam levado. Era um dia de inverno chuvoso, ‘sombrio’, e anos depois Oppenheimer afirmou ter tido uma vívida percepção: ‘estiver a ponto de me matar. Aquilo era crônico'”, assinala a biografia (página 61).
Oppenheimer realmente tentou matar um professor com uma maçã envenenada?
O único ponto tratado pelo filme de Nolan nesse período obscuro de Oppenheimer foi o episódio em que ele envenena uma maçã do supervisor em Cambridge, Patrick Maynard Stuart Blackett. No longa-metragem, ele realmente insere nitrato de potássio na fruta e, depois, ainda vive um momento de desespero quando Niels Bohr quase a come. É uma passagem nitidamente exagerada, porém. No livro, os autores deixam claro que esse episódio foi absolutamente obscuro na biografia de Oppenheimer e pouco se sabe o que aconteceu — e não há qualquer registro de que Bohr tenha quase comido a maçã. É simplesmente uma sacada de roteiro para criar tensão. “Se o suposto veneno fosse potencialmente letal, o que Robert havia feito equivalia a tentativa de assassinato. […] O mais provável é que ele tivesse introduzido na maçã algo que deixaria Blackett apenas enjoado”, ressaltam os autores da biografia.
Oppenheimer era um homem que gostava de estudar sobre assuntos místicos
O filme de Christopher Nolan até traz alguns elementos disso, como a leitura de um texto em sânscrito durante um ato sexual entre Oppenheimer e Jean Tatlock, mas é pouquíssimo aprofundado. O fato é que Oppenheimer, que vem de uma família judia, acabou encontrando conforto no esoterismo, misticismo e em filosofia e religiões de base oriental. Foi aí, afinal, que ele acabou encontrando seu equilíbrio interno e deixou esse passado instável para trás. Seu principal interesse era no Mahabharata, um dos dois maiores épicos clássicos da Índia. “Com 20 e tantos anos, Oppenheimer já parecia buscar um desprendimento terreno; ele desejava, em outras palavras, estar engajado como cientista no mundo físico e, ainda assim, desprendido dele. Não buscava fugir para um reino puramente espiritual. Não buscava uma religião. O que buscava era paz de espírito”, ressaltam os autores do livro nas páginas 113 e 114 da biografia.
Jean Tatlock foi assassinada?
A biografia traz um capítulo inteiro para discutir a morte de Jean Tatlock, psiquiatra que foi namorada e, depois, amante de Oppenheimer. Tudo indica que ela se matou em 1944, quando foi encontrada pelo pai morta com a cabeça dentro de uma banheira e as almofadas dispostas no chão. No entanto, há dúvidas — e isso é pouco abordado no filme, que apenas insere um único frame de uma mão empurrando a cabeça de Jean para dentro da banheira.
“O relatório da autópsia não contém nenhuma evidência de que barbitúricos tenham chegado ao fígado ou a outros órgãos vitais. Tampouco indica se ela havia tomado uma dose suficientemente grande para causar a morte. Ao contrário, como já observado, a autópsia determinou que a causa da morte foi asfixia por afogamento”, indica o livro na página 277. A partir disso, a biografia indica dois caminhos: o suicídio pode ter acontecido pela profunda angústia de Tatlock, que se descobriu lésbica; enquanto o assassinato poderia ser para evitar vazamento de informações de Oppenheimer para ela. Afinal, Tatlock ainda era uma ativista da esquerda e com comunicações com comunistas.
O caso Chevalier foi realmente muito importante na vida de Oppenheimer
No filme, o ponto de virado no tratamento do governo norte-americano com as informações obtidas por J. Robert Oppenheimer foi quando ele resolveu avisar os militares que o cientista George Eltenton estava tentando obter informações sobre o programa nuclear norte-americano para repassar aos comunistas. E apesar de parecer uma cena conspiratória, em que Haakon Chevalier “joga um verde” para tentar a colaboração de Oppie, tudo ali é verdade. O acontecimento (quando Chevalier provoca Oppenheimer falando sobre Eltenton) é verdadeiro e foi um marco na vida do físico. “A vida de um homem pode se transformar com um pequeno acontecimento, e com Robert Oppenheimer esse incidente aconteceu no inverno de 1942-1943, na cozinha da casa dele em Eagle Hill”, sublinha o livro, na página 204. “O que foi dito, e a maneira como Oppie resolveu lidar com a questão, moldaram de tal forma o restante da vida dele que nos sentimos tentados a fazer comparações com as tragédias gregas e com Shakespeare”.
Kitty Oppenheimer teve seu comportamento amenizado no filme
Curioso notar que o roteiro de Nolan resolveu amaciar um pouco o comportamento de Kitty Oppenheimer, esposa do físico. Primeiramente, em relação aos filhos: Kitty, além dos problemas com bebida (que são mostrados em duas cenas do longa-metragem), claramente teve depressão pós-parto e não soube lidar com os filhos. O primeiro deles, Peter, foi realmente enviado à outra família por um tempo. “[Kitty] estava à beira de um colapso emocional”, diz o livro (p. 287). Pior: no período em que Kitty foi embora de Los Alamos e Peter foi entregue para amigos, Robert chegou a fazer uma proposta absurda. Perguntou aos que estavam cuidando de Peter se não queriam adotá-lo, piorando a situação. Outro ponto suavizado por Nolan foi a personalidade de Kitty. Ela era explosiva, teimosa e tinha poucos amigos — na verdade, até mesmo pessoas da família não gostavam da esposa de Robert. A esposa do irmão de Oppie, Jackie, deixava isso claro. “[Ela] sempre achou que ela era uma ‘sacana’ e se ressentia da maneira como, na opinião dela, havia separado Robert dos amigos”, assinala o livro, na página 173. Chegou a chamar Kitty de manipuladora e falsa.
Los Alamos realmente era uma cidade para os criadores da bomba atômica?
Sim. Para abrigar os cientistas e suas famílias, além de ser um atrativo para os grandes nomes da academia, o governo norte-americano construiu uma verdadeira cidade em Los Alamos, com bar, igreja e até barbeiro. No entanto, como ressalta o filme, as condições iniciais eram precárias: quase tudo era de madeira, com pouca infraestrutura, e parecia de verdade uma cidade de faroeste. Aos poucos, porém, o Laboratório de Los Alamos foi ampliado e fortalecido. A cidade-laboratório existe ainda hoje, mas mais moderno e seguro: é um laboratório federal pertencente ao Departamento de Energia dos EUA, gerido pela Universidade da Califórnia e com mais de 10 mil colaboradores.
Jornalista especializado em cultura e tecnologia, com seis anos de experiência. Já passou pelo Estadão, UOL, Yahoo e grandes sites, sempre falando de cinema, inovação e tecnologia. Hoje, é editor do Filmelier.