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‘Titane’: Os humanos são feitos de metal

Quando Julia Ducournau apresentou seu filme de estreia, ‘Raw’, em Cannes, o debate parecia se resumir ao enredo por trás de suas imagens chocantes: uma universitária religiosamente vegetariana desenvolve um apetite repentino por carne humana. Com ‘Titane’ – que estreou na MUBI na última sexta-feira, 28, a história parece se repetir.

Seja para o bem ou para o mal, o segundo longa-metragem da cineasta francesa – que venceu a Palma de Ouro do último Festival de Cannes – parece destinado a ser discutido em torno de uma cena chave: quando sua protagonista, Alexia (Agathe Rousselle), faz sexo com um muscle car.

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Mas reduzir ‘Titane’ a “um filme sobre uma mulher com fetiche por metal” faria o mesmo desserviço que falar sobre ‘Raw’ como apenas um filme sobre uma canibal em ascensão. Sob a superfície, esta última é uma história de amadurecimento sobre uma jovem que aprende a se aceitar, não importando quão terríveis sejam suas necessidades, algo que transcende a lógica até se inserir no reino de uma fábula ou conto de fadas que o irmãos Grimm teriam escrito alegremente, se tivessem vivido no século XXI.
Reduzir ‘Titane’ ao fetiche é um desserviço ao filme (crédito: divulgação / MUBI)

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Com seu segundo longa-metragem, Ducournau repete a fórmula e nos apresenta outra história que beira a incoerência típica apenas das fábulas. Só que desta vez não se trata da fragilidade do corpo humano, mas da maleabilidade da identidade.

Era uma vez uma serial killer…

‘Titane’ (palavra francesa para “titânio”) estabelece desde os primeiros minutos um vínculo único entre sua protagonista e o metal. Enquanto viaja de carro, a pequena Alexia (aqui interpretada por Adèle Guigue) incomoda seu pai que, cansado, tira os olhos da estrada e causa um acidente. Um impacto brutal depois, e vemos a garota recebendo um implante de titânio na cabeça. Anos depois, Alexia trabalha como modelo, dançando em cima de carros possantes em exposições diante de hordas de fãs sedentos e seus olhares ansiosos. Ela mantém a cicatriz em sua cabeça claramente visível, um lembrete do metal que está e estará dentro dela. No entanto, sua vida toma um rumo estranho e violento quando um desses fãs se recusa a aceitar um “não” como resposta, então ela opta por uma solução radical. Depois disso (e do já mencionado encontro sexual motorizado), o primeiro ato de ‘Titane’ se transforma em uma espiral alucinatória de violência que leva a protagonista a fugir – aparentemente grávida do carro – e a abandonar sua identidade. Então ela modifica sua aparência (de maneira radical demais para estragar dando spoiler aqui), se passando por um garoto que está desaparecido há décadas, Adrien.
Em ‘Titane’, uma placa de titânio na cabeça é o início de uma transformação mais profunda (Crédito: Divulgação/MUBI)
No entanto, quando ela é detida, o pai de Adrien, Vincent (Vincent Lindon), um bombeiro veterano, afirma reconhecer seu filho nela. Incapaz de fazer ou dizer qualquer coisa que a entregue, Alexia/Adrien é levada para casa, onde deve manter sua fachada no ambiente hipermasculino de um quartel. A partir de agora, o filme de Ducournau equilibra a cura da relação entre pai e “filho”, com a tensão que Alexia passa para esconder sua feminilidade – e uma estranha gravidez cada vez mais evidente – para não ser descoberta.

‘Titane’ e as identidades maleáveis

Desnecessário dizer, por si só, o fato de ter uma protagonista grávida de um carro faz mais do que ultrapassar os limites extremos da plausibilidade: torna-se objeto de uma fantasia distorcida em que até os elementos mais viscerais e mórbidos caem no terreno da metáfora. O metal, então, é mais do que as fixações sexuais de sua protagonista, mais do que o implante alojado em seu crânio e mais do que a espreita de uma barriga que derrama óleo de motor. Em primeira instância, podemos pensar que o metal representa os monstros que se escondem em nós. Considerando seus atos brutais e a transformação física pela qual ela passa, a própria Alexia é, sem dúvida, um dos monstros mais aterrorizantes a sair da tela neste século, uma força da natureza além da explicação.
“Sempre me confundiram com meninos e homens”, diz Agathe Rousselle, protagonista de ‘Titane’ (Crédito: Divulgação/MUBI)
Mas sua presença na casa de Vincent desencadeia mais do que uma mudança física, pois para ela, seu pai e aqueles ao seu redor, também acarretam transformações psicológicas na forma de transgressões de normas que, tradicionalmente, são definidas por sua rigidez. Mas o metal mais duro, colocado sob pressão suficiente, quebra ou dobra. Se adapta. Em ‘Titane’, o gênero se dobra. Para se esconder, Alexia decide esconder suas feições femininas e sua barriga para se passar por Adrien, adotando um olhar de ambiguidade profundamente andrógeno. A escalação da atriz Rousselle, modelo totalmente alheia ao cinema e descoberta no Instagram, não é por acaso: “Eles não me falaram muito sobre o filme na audição”, lembrou a atriz em entrevista à Interview Magazine. “Eu sabia que tinha algo a ver com gênero, algo com o qual eu estava familiarizada, pois sempre me confundiram com meninos e homens.” Mesmo incluído no ambiente, a hipermasculinidade dos outros bombeiros também transparece. Eles, que uma vez se referiram a “Adrien” como “gay” devido à sua aparência frágil, ficam visivelmente confusos quando a verdadeira essência de Alexia borbulha e vem à tona durante uma festa. Eles mesmos são os protagonistas de uma cena com conotações homoeróticas: enquanto todos dançam juntos (“Mas eu vi como os corpos mentem e os corpos tendem a se quebrar”, diz a música “Light House” de Future Island que toca no fundo), um deles tenta revelar a verdade sobre Adrien para Vincent. “Volte para o buraco de onde você saiu”, o pai responde para o colega. “Você não sente a energia entre nós?”. Não é apenas a mentira: a ambiguidade de seu gênero é percebida como uma ameaça.
Vincent Lindon traz para ‘Titane’ a expressão de um homem que perdeu tudo (Crédito: Divulgação/MUBI)
A mesma cena apresenta um dos momentos mais doces entre o pai e seu “filho”, e é aqui que começamos a entender que a verdade sobre a protagonista pode não importar. “Ninguém fala do meu filho. Nunca”, Vincent diz em negação, quando o assunto não poderia ser mais óbvio. Este é um homem cuja vida e mente foram destruídas pelo desaparecimento de um filho. Mais resistente é o seu corpo, uma velha massa de músculos masculinos agarrada à juventude com esteróides. Ele não poderia ser mais teimosamente rígido, mas diante da possibilidade de arranhar novamente a paternidade, o conceito tradicional de família se dobra a ponto de dizer a uma desconhecida com seios, com convicção, que ela é seu filho. Quando ‘Titane’ chega ao seu desfecho e os créditos rolam, vimos um filme que consegue oscilar entre a ambiguidade e o absurdo mais delirante, o que pode ser frustrante por não responder a todas as suas incógnitas. No entanto, sua história é uma bela selvageria capaz de mover as vísceras para nos confrontar com uma verdade: a maleabilidade da identidade humana.

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Publicado primeiro na edição mexicana do Filmelier News.

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Lalo Ortega

Lalo Ortega é crítico e jornalista de cinema, mestre em Arte Cinematográfica pelo Centro de Cultura Casa Lamm e vencedor do 10º Concurso de Crítica Cinematográfica Alfonso Reyes 'Fósforo' no FICUNAM 2020. Já colaborou com publicações como Empire en español, Revista Encuadres, Festival Internacional de Cinema de Los Cabos, CLAPPER, Sector Cine e Paréntesis.com, entre outros. Hoje, é editor chefe do Filmelier.

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