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Crítica de ‘Godzilla e Kong’: cinema de “monster trucks”

A franquia do MonsterVerse – cujo novo filme, Godzilla e Kong: O Novo Império chega aos cinemas em 28 de março – tem uma genealogia tão improvável quanto curiosa. É a versão americanizada de Godzilla (1954), a metáfora por excelência do trauma nuclear do Japão; e de King Kong (1933), uma fantasia de aventura alegórica da colonização e escravidão.

Juntas, são duas das obras fundamentais do cinema de monstros gigantes (ou kaijū), que se transformaram em todos os tipos de filmes. Cada uma por si só, tornaram-se franquias com múltiplas sequências e reinterpretações em remakes. Godzilla já foi de super-herói gigante a crítica política ao desastre nuclear de Fukushima. King Kong cresceu em tamanho e foi reinventado como símbolo do fracasso americano no Vietnã.

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Isso nos fala das possibilidades expressivas dos monstros. Eles são, parafraseando o cineasta mexicano Guillermo del Toro, uma encarnação da vida, suas imperfeições e horrores, mas também da possibilidade de nos redimirmos e seguirmos em frente. É por isso que, a cada entrega, o MonsterVerse se torna mais decepcionante, vazio. Godzilla e Kong: O Novo Império têm um trabalho impressionante em termos de animação digital e efeitos especiais, isso não pode ser negado. Mas todo o talento nesta megaprodução – cujo orçamento é estimado em 135 milhões de dólares (USD) – está a serviço de uma história sem alma.

Outro de titãs

Godzilla e Kong continua com o status quo estabelecido por sua antecessora: depois de quase se destruírem mutuamente e se unirem para derrotar Mecha-Godzilla, ambos os titãs dividiram territórios. Godzilla é o rei dos monstros na superfície, enquanto Kong deve governar nas profundezas da “Terra Oca”, um mundo que existe nas profundezas de nosso planeta e de onde vêm todas as criaturas gigantes. Não é necessário ter visto a onda de materiais promocionais do filme para prever o que está por vir. Se mudarmos o “vs.” por “e” no título, a história deve estabelecer o pretexto para a aliança entre esses titãs. Tudo começa em mistério: Godzilla age estranhamente, e Kong reaparece na superfície. Os humanos da história (um elenco liderado por Rebecca Hall, Bryan Tyree Henry e Dan Stevens) decidem investigar, e não demoram a seguir Kong até a Terra Oca para descobrir o que está acontecendo: existe uma pequena sociedade humana nas profundezas que pede ajuda para enfrentar Skar, outro macaco gigante que vive obcecado em dominar o planeta, por dentro e por fora.
Godzilla e Kong é um desperdiço criminal de talento humano (Crédito: Warner Bros. Pictures)
A partir daqui, Godzilla e Kong se torna um passeio por um mundo gerado por computador. Os consideráveis talentos de seu elenco são colocados a serviço do diálogo expositivo, para explicar o que, logicamente, seus titânicos protagonistas não podem: a complicada – e nada interessante – mitologia do MonsterVerse. É pura tagarelice que, na melhor das hipóteses, será apreciada pelos fãs mais dedicados da franquia. Num claro esforço para expandir a franquia, são introduzidos conceitos, histórias, monstros novos. Mas são momentos dramaticamente mais frios do que a nova era glacial que Skar pretende desencadear na Terra. A grande paradoxo é que os momentos mais emotivos e humanos de Godzilla e Kong são entregues por personagens que não podem falar e que, na realidade, nem mesmo existem. Aplausos às equipes de efeitos especiais e animação pela expressividade alcançada em Kong e em “Mini-Kong”, que compensam a anemia de emoções no resto da metragem sem dizer uma palavra, apenas com seus rostos e corpos digitais.

Godzilla e Kong não entende o que gostamos nos monstros

Já foi dito até a exaustão sobre este tipo de filmes: “as verdadeiras estrelas são os monstros”. Ou seja, que tudo é um pretexto para vê-los se golpearem na cara, derrubarem prédios, cuspirem raios de energia. Um espetáculo cuja concepção da devastação é quase pornográfica (o que importa alguns cariocas pisoteados? Kong tem um braço de metal!). Deixemos de lado o quão tedioso e gratuito é tudo isso neste filme. O verdadeiro problema é que o MonsterVerse demonstra sua completa falta de compreensão sobre o que uma verdadeira e grandiosa filme de monstros precisa. Não é ver macacos e lagartos gigantes se batendo em gravidade zero, mas sim ter algo a dizer sobre a humanidade. Elemento que, de fato, não estava totalmente ausente nos capítulos inaugurais da franquia, Godzilla (2014) e Kong: A Ilha da Caveira (2017). E é à sombra de Godzilla Minus One, produção da japonesa Toho lançada apenas alguns meses atrás (e premiada com o Oscar de Melhores Efeitos Visuais), que Godzilla e Kong parece especialmente patético. Vamos ignorar a diferença abismal nos custos de produção: sem deixar de ser espetacular, Minus One é uma obra de arte que reflete sobre a luta espiritual do Japão com seu passado beligerante e suas cicatrizes nucleares (e estima-se que custou menos de 15 milhões de dólares).
Godzilla e Kong não entende o que faz seus monstros especiais (Crédito: Warner Bros. Pictures)
Seria errado afirmar que o Godzilla japonês sempre foi tão solene e meditativo (não foi), mas também é verdade que o MonsterVerse americano poderia explorar esse potencial. Já tentou: apenas alguns meses atrás, também foi lançada na Apple TV+ a série Monarch, que explora as origens da misteriosa organização que estuda os incidentes com monstros. Entre outros temas, a série aborda a dualidade da identidade dos nipo-americanos, com Godzilla como dispositivo narrativo. Os monstros, novamente, são o de menos. Precisamos de entretenimento trivial e simples, repleto de calorias e desprovido de nutrientes em nossas vidas? Absolutamente. Mas isso não deveria ser incompatível com fazer um filme com um pouquinho de alma. E nesse sentido, Godzilla e Kong é o oposto. É o equivalente a assistir a uma horda de lutadores se espancarem por duas horas a bordo de monster trucks – aqueles caminhões gigantes, conhecidos ora pelos admiradores de shows radicais-, enquanto o Kiss explode os alto-falantes e acompanhamos o espetáculo com um hambúrguer triplo, transbordando de bacon e coberto de queijo. De forma nenhuma isso é um elogio.

Godzilla e Kong: O Novo Império estreia nos cinemas em 28 de março. Compre seus ingressos para assistir.

Publicado primeiro na edição mexicana de Filmelier News.
Lalo Ortega

Lalo Ortega é crítico e jornalista de cinema, mestre em Arte Cinematográfica pelo Centro de Cultura Casa Lamm e vencedor do 10º Concurso de Crítica Cinematográfica Alfonso Reyes 'Fósforo' no FICUNAM 2020. Já colaborou com publicações como Empire en español, Revista Encuadres, Festival Internacional de Cinema de Los Cabos, CLAPPER, Sector Cine e Paréntesis.com, entre outros. Hoje, é editor chefe do Filmelier.

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